terça-feira, 13 de março de 2007

UM OUTRO OLHAR SOBRE O PORTINHO

Por Celestino Ribeiro



Um pescador.
Um pescador Ancorense olha o mar, olha o céu.
Conhece bem o sítio onde vive e o largo mar onde trabalha. Esta qualidade fez- lhe adquirir um saber misterioso.
O seu olhar não poisa noutro lugar. Daqui, do Portinho, olha o mar, olha o céu.
O mar , agora, está baixo, calmo e baixo, na tarde que se aninha em direcção ao poente. O sol já tomba sobre um horizonte pintado de púrpura, os raios em desmaio acenam em jeito de despedida. E na esteira de fogo que se desenha sobre a superfície estanhada do mar, o dia fenece silencioso.
O homem, o pescador Ancorense, sorri. À memória acode- lhe o rifão: “ VERMELHO AO MAR, VELHINHAS A ASSOLHAR”. Amanhã vai fazer bom tempo. E recolhe com satisfação ao barco que o espera baloiçando suavemente amarrado ao cais.
A noite cai serena. As peças da sardinha mergulhadas na água acendem um clarão fluorescente , translúcido, ao serem puxadas para bordo da embarcação. Arde o mar profundo na noite , denunciando o movimento das suas criaturas, as artes de pesca quando a força dos homens e das correntes as agitam. É um fenómeno observado numa parte do ano, quando os dias crescem e as noites encolhem. “ Já pinta” diz o pescador.
A rede vem cheia de sardinha. No céu , um crescente de lua sobe. Está de pé , como uma sentinela vigilante. O pescador olha o céu. O olhar alegra- se. Pode carregar a embarcação, que a calma vai manter- se pois, “ LUA EM PÉ, MARINHEIRO DEITADO “ . Sim, pode ficar descansado o nosso pescador, porque este sinal lhe assegura uma noite bonançosa e um dia seguinte de bom tempo.
Ah ! É Junho, é mês de S. João. E lá diz o velhinho provérbio: “ PELO S. JOÃO, PINGA A SARDINHA NO PÃO”. Sardinha assada nas brasas duma fogueira ateada ao pé da porta da casa do pescador. Que odor apetitoso se espalha, que sabor sobre um pedaço de broa e regada com o tinto imaculado do vale de Âncora. Ah ! A sardinha assada, um pouco de nostalgia, um costume herdado pelo nosso pescador da sua Galiza ancestral.
Agora já é um dia de Julho. A manhã acordou algo cinzenta. O vento é sul moderado. O homem, o pescador Ancorense olha o mar, olha o céu. Está debruçado sobre um vaso pintado cor de prata da balaustrada da avenida marginal. Não desanima : “ SUL ARRASTADOR , NORTE PESCADOR”. Mas há mais nesta época estival: “ SUL DE MANHÃ , NO VERÃO, À NOITE REMO NA MÃO “. Apesar deste vento sul que arrasta nuvens e encobrem o céu, a noite será calma e boa para a pesca.
Outro dia. Corre hoje um mar indefinido cinza- esverdeado à luz duma meia manhã , nuvens esparsas em altitude. Um fundo escuro roçando o horizonte norte. O pescador perscruta esse horizonte distante e recorda o provérbio: “ NORTE ESCURO, SUL SEGURO” . Dali a algumas horas, já de regresso ao Portinho que lhe fica a leste, rema desde a “ Beirada de Fora “ - uma depressão de afloramento rochoso da plataforma continental – quando vislumbra um outro sinal atmosférico sobre o cone do monte de Sta. Trega ( Tecla ) , e não duvida : “STA. TREGA COM CAPELO, CHOVE LOGO OU VENTA CEDO “ .
Com efeito, a meia distância do Portinho, uma ligeira brisa de sul começa a soprar. O homem, o pescador Ancorense, iça a vela e os remos descansam. A surreada ( saraivada de água da ondulação contra a borda da embarcação ) à mistura com a chegada das primeiras precipitações, recebem o nosso homem, o pescador Ancorense, no Sabugo à entrada do ancoradouro do Portinho.
Já a lua da noite anterior prenunciava uma mudança atmosférica. A meia- lua bem destacada no céu em forma de berço dava razão ao adágio: “ LUA DEITADA , MARINHEIRO EM PÉ “. E, ainda, o círculo anelar que a circunscrevia confirmava : “ LUA COM ANEL, CHUVA OU VENTO A GRANEL” . Mais, o céu daquela manhã revestia- se de cirros que não enganavam : “ CÉU ESCAMENTO, OU CHUVA OU VENTO” .
Não é marinheiro o que não olha para o mar e para o céu. O homem do mar conhece a natureza, os elementos do seu universo e do seu campo de actividade. O mar traz- lhe as notícias antecipadas de outras latitudes e de outras longitudes, pelo modo distinto da agitação do seu dorso e o impulso ora revolto , ora suave , das suas ondas.
Conjugado com o aspecto do mar, o céu traz- lhe sinais inequívocos que aprendeu a decifrar. As embarcações à vela de outros tempos, exigiam o olhar atento para o alto, para os aparelhos , os mastros, o massame e o poleame. Mas também para os sinais impressos na abóbada celeste. É por isso que na gíria marítima se diz que “O PORCO NÃO FOI MARINHEIRO, POR NÃO OLHAR PARA O AR “.
Com coisas simples como estas, com esta pedagogia se formava e conformava um pescador crente nas suas tradições e conhecimento empírico. Este é um pequenino exemplo de um universo ainda por explorar.
E o pescador, o pescador Ancorense, deixando a sua gamela varada no Portinho, voltou o seu olhar mais uma vez para o mar, para o céu , e deixou- se perder em pensamentos de regresso a casa.

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