terça-feira, 13 de março de 2007

PARA A HISTÓRIA TRÁGICO – MARÍTIMA ANCORENSE

Por Celestino Ribeiro
Dos tempos mais remotos , achados arqueológicos indiciam o desenvolvimento de actividades pesqueiras nas reentrâncias do litoral rochoso da nossa costa, realizadas pelo homem pre- histórico. Não conhecemos, todavia, a dimensão dessa indústria, nem se utilizavam embarcações nessa actividade marítima. Mas podemos imaginar que, à semelhança dos oestrymnios deste noroeste peninsular, o homem primitivo que habitou nas margens das rias galegas construiu embarcações de peles de animais e que ousou fazer- se mais ao largo da penedia costeira.
Os tempos posteriores, da Reconquista à fundação desta comunidade sobre as antigas “villages” de origem românica e sobreviventes das invasões muçulmanas, dão- nos a notícia de um assentamento agrário mas omite qualquer referência a uma actividade pesqueira elaborada.
Todavia, no início do séc. XIX, antes do estabelecimento de uma comunidade de pescadores galegos, já existiam camboas construídas para a captura de peixes e se havia desenvolvido a prática da apanha do sargaço como fertilizante para o amanho das terras. Eram os proprietários rurais que exerciam esse labor e, coadjuvados pelos seus assalariados, construíram na pequena reentrância natural do portinho Ancorense as pequenas arrecadações de apoio sobre as primitivas dunas do lugar. O último testemunho dessas arrecadações do sargaço e rudimentares ferramentas de pesca, é o conhecido “ Barracão da Senhora da Bonança” inicialmente de cobertura de folha de zinco que, mais tarde, foi adquirido pela Associação de Nossa Senhora da Bonança, uma Confraria de Pescadores.
Cremos que as outras arrecadações, mais antigas, eram de dimensões bastante inferiores, a julgar pelas áreas de ocupação reduzidas das habitações dos pescadores que nelas tiveram origem, assim como as “casinhas” e as “caldeiras” onde os pescadores guardavam os apetrechos de pesca e curavam as redes, ( “ encascar” com a tinta extraída artesanalmente da casca de salgueiro, que era esmagada em pias de pedra e depois cozida ).
O assentamento da primitiva comunidade galega de pescadores na segunda metade do séc. XIX, está na origem do desenvolvimento de uma importante indústria de pesca e do alvorecer de uma comunidade de pescadores ancorenses resultante da segunda geração de galegos que conservou a sua matriz endogâmica , raramente beliscada.
Não cabe aqui desenvolver o relato pormenorizado das origens do Portinho como comunidade específica , nem é esse o nosso propósito neste modesto contributo.
Já nos finais do séc. XIX, destaca- se a figura quase lendária de Pedro Bogalho, cuja origem ancestral é galega. A sua acção mais relevante e conhecida, foi a célebre intervenção junto do governante real de passagem por Gontinhães em direcção a Caminha onde se dirigia. Fazendo parar a carruagem, Pedro Bogalho pediu- lhe um “porto de mar” para poder matar a fome aos filhos e, em seguida, para espanto de toda a comitiva, ofereceu- lhe uma caldeirada de sardinhas, facto que o governante agradeceu e fez questão de sublinhar que, em toda a costa portuguesa que visitou, ninguém lhe tinha oferecido uma caldeirada de sardinhas. E ali mesmo, o governante lhe prometeu o “porto de mar” que pedia.
Pedro Bogalho era um homem de horizontes largos, temperado na dureza da vida e trabalho no mar, espírito solidário e singular capacidade de liderança. O primeiro barco salva- vidas desta praça recebeu o nome de “Pedro Bogalho” como homenagem da classe ao homem que reconhecia. Firmino Verde foi mestre desta embarcação, tendo- lhe sucedido o Manuel Galego também mestre do terceiro e último barco salva- vidas, o “Lagoa”.
Também o largo que hoje ostenta o nome de Pedro Bogalho, foi uma feliz ideia para lembrar a grandeza de um carácter e o vínculo a uma pertença. Talvez não tenha sido um Cego do Maio poveiro mas, seguramente o indicador determinado de um rumo que agora vê desabrochar o maior investimento público - nunca é demais lembrar - dos últimos anos em Vila Praia de Âncora. Referimo- nos concretamente às obras do novo Porto de Abrigo e marina náutica.
Esta obra sucessivamente prometida e sempre adiada primeiro, com o argumento da inviabilidade económica e, agora mesmo, com a alegada inexistência de profissionais de pesca para rentabilizar e justificar o investimento, é a prova da miopia de alguns e da esperança de muitos.
Uma terra que o mar tão profundamente marcou, não pode ignorar o coro de vozes que ressoa naquele lugar, naquelas ruas estreitas que o modernismo descaracterizou. São as vozes daqueles que partiram e nunca mais voltaram ao berço sagrado do Portinho. Junto ao nicho do Senhor dos Aflitos, as lágrimas vertidas de desespero e desconsolação , misturam – se soluçantes com o fragor das ondas.
Seria justo e digno pois, - o que até não é inédito – levantar um memorial à ousadia e ao heroísmo dos pescadores ancorenses que pereceram no mar. Uma pedra arrancada que fosse às primitivas estruturas do portinho, para lembrar as tragédias que no séc. XX se cifraram em quarenta e um pescadores mortos no mar. Ao menos uma pedra em sua memória, seria o mínimo pedido. E poderíamos contar como eles eram, as histórias dos seus naufrágios, as palavras como se despediram em terra para não mais voltar, os pressentimentos e premonições sei lá, o último olhar que o mar reclamava. Também o luto, o silêncio de chumbo, as lágrimas irrepremíveis , as famílias na dor e desolação, os pais , os filhos, os irmãos, os amigos que se foram sem dizerem adeus, porque só estranha e misteriosamente pressentido.
Numa terra onde se sente a ausência de monumentos civis evocativos ( 95% dessas peças são de referência religiosa ) uma grave lacuna esconde o conhecimento da nossa história colectiva que os poderes públicos locais , pessoas e associações têm a obrigação de promover , dotando-a de sinais de referência para a posteridade, para que os vindouros conheçam e se orgulhem da sua pertença e da sua identidade ancorense.
Se já a toponímia de Vila Praia de Âncora deixa em grande parte muito a desejar por não privilegiar figuras e acontecimentos locais as referências de estilo escultural e arquitectónico são de uma ausência confrangedora . Estas referências são de relevante importância para a dignificação da nossa terra , o postal evocativo da nossa caminhada colectiva no tempo, o orgulho pela nossa história que nos contempla e nos desafia de impulso ao futuro .

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