terça-feira, 13 de março de 2007

PROA AO MAR

Por Celestino Ribeiro
Nortada, brisa desfeita, mar de barbalhão. Mar branco de espuma, as carrouqueiras erguiam- se espicaçadas pelo vento cavando o dorso do mar. A espuma branca e fervilhante da ondulação metia respeito como as barbas de S. Telmo. Mas o poente é de jeito, mascatos voando em acrobacias estonteantes penetram na água , gaivotas em alvoroço, sardinha, muita sardinha, vai o mar cheio. O jeito que vai no mar não engana.
Depressa, varas estendidas na areia, rolos em cima e a gamela a deslizar sobre eles.
- Vai, vai, para baixo todos os santos ajudam!
- Vem malhouco, agora, empurra, salta. Vamos com Deus!
Algumas remadas e o Sabugo é alcançado, espuma dispersa da raiva do vento que as ondas desfaz.

- Vamos marear! – grita o arrais. Agora, enverga, pano estendido de proa à ré, amarra os envergues à verga alongada, lestos os aparelhos . – Arvorar o mastro, ostagar . Iça, iça, retesa os caçoilos , colhe a escota, teza o socairo . O leme, o leme já está ferrado , a cana do leme enfiada na cachola.
Roupa de oleado ajustada ao corpo , sueste a cobrir a cabeça salpicada de vento e de mar, alerta constante, vai a bolinar.
Força gamelinha, o jeito vai a noroeste pelo Lago, a Parede, os Carvalhinhos.
Ah ! Mar de Deus, a surreada é de proa à ré, a gamela adorna por bombordo, a água entra pela borda metida. A vela latina é grande e perigosa, exige muita perícia e experiência nestas condições de nortada forte e mar encrespado, mas aguenta – se.
- Rapaz, escoa a água!
E o rapaz, iniciado, agarra - se a bombordo tiritando de frio e de medo, empunha a cunha ( bartedouro ) e zás, zás, pressuroso escoa a água .
- Para estibordo! - grita o arrais – depressa rapaz, vai adornar .
A vela quase toca na água , a gamela quase se volta, o rapaz encheu os canecos, aturdido pelo rugido do mar e os gritos do arrais , indefeso e molhado como uma sopa. Na boca o sabor amargo do sal e da vida que abraçou.
Manobra para arribar, proa à linha de vento. A água é muita a bordo: -Escoa, escoa . Ufa, que susto!
Agora, de novo à bolina, mais uma bordada a nordeste e outra mais a noroeste . – Virar, virar! – Ah ! gamelinha, vela latina em barco masseira, estrutura românica , testeiro de proa, testeiro de ré, grande leme para compensar o fundo chato.
- É melhor rizar, tio Rifeiro.
- Não – responde – não vamos rizar, a gamela aguenta, nós aguentamos, podeis confiar, asseguro –vos. Logo o sol cai na água , temos de chegar depressa aonde vai o jeito.
- Então, que a Senhora da Bonança nos ajude.
É o último bordo, emposta a noroeste, mais surreada forte, verga a gemer contra o mastro firme , o vento a rugir nas adriças, pano cheio, proa ao mar.
- Vamos arrear! Aproa, colhe a escota, enrola o pano.

Mastro e verga descansam agora sobre a forqueta. O leme repousa sobre o testeiro e o banco de ré. O rapaz estava extenuado. Que bem sabia bater uma sorna ali debaixo do leme , abrigado . Mas o trabalho vai continuar.
- Vamos largar com Deus.
E as peças - as redes da sardinha - saem pela polé, à proa, boiréu, após boiréu, sineiras retesadas . Então , o sol baixinho , despede- se e o dia fenece. A nortada amaina , adormece com o sol perdido no desmaio do horizonte.
O assejo é breve, já há boireis mergulhados na água puxados com o peso suplementar das redes . A sardinha está nas malhas como o cabelo.
- Vamos alar!
As redes são agora um grosso rolo a entrar para bordo puxadas por braços renovados de força e entusiasmo. Chegam carregadas de sardinha , vivinha, brilhante como a prata, agitada e aflita. Enche –se a pana , a gamela tem a proa afocinhada até à matrícula.
- Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo! Para hoje já está e para amanhã Deus dará.

Agora a remos para o Portinho. Não há vento para a vela.
O silêncio da noite é cortado pelo esforço dos remos , o ruído peculiar do impacto das pás contra a água, das orelheiras enfiadas nos toletes e do arfar dos remadores. A proa chata corta o mar com dificuldade e, com o peso, amorrinha mais ao impulso e cadência das remadas. A luz mortiça do cigarro denuncia o fumador inveterado.
Horas a remar: - oh ! S. Bento dai vento - mas só um gracejo a animar responde: - Ai , Alentejo da minha alma, arma os remos que está calma.
Depois, o cheiro quente dos pinheiros trazido pelo balbuciar duma suave e fugaz aragem de leste. É o bafo da terra que respira muito próxima.
Faróis enfiados , Portinho adentro. - Encosta, encosta, vamos varar.
- Não, encosta só que a maré está a baixar e, logo, a gamela fica encalhada no lugar da venda e do escochamento da sardinha .
Ali, sobre a areia deixada pela maré em seco, descansa agora a gamela, como um guerreiro no fim da batalha.
O clarão da alva ergue – se , diáfano, imaculado e já corre o pregão da Maria da Júlia a cortar o silêncio das ruas estreitas e desertas, ainda submersas na quietude matinal.
- Ó putas … levantai – vos da cama que os vossos homes já chegaram . É uma praia de sardinha , vivinha como a prata, graças a Deus!
E logo o bulício característico, o cheiro, as imprecações à mistura com devoções, o Guarda Fiscal que é gatuno e impõe um dízimo pesado que entrega ao roleiro indignado, aquela peixeira que quer mais seis mãos ( um quarteirão de sardinhas ) sobre meio cento alegadamente por lhe terem faltado sardinhas na venda do dia anterior: - ai a ladra ! - Mas, depois, tudo bem após uma corrida de “vai- te foder…, vai trabalhar”, em tom muito jucoso .
Ah ! E o pobre que pede encostado à proa do lado de fora, olhar faminto e guloso. Sim, dar ao pobre para comer , que quando Deus dá , dá para todos.
As sardinhas que estão no foquim são para a caldeirada. E que não esqueça o quinhão da Santa.
Que grande semana! Dá para comprar camisola e calças novas , pôr uma mesa de rico, beber uns copos e divertir – se. É a festa da Senhora da Bonança, as bandas de música, a feira de atracções, a capela iluminada , tão bonita, os foguetes a estoirar no ar, o fogo preso e de artifício, os bailaricos , o arraial, a procissão junto ao Portinho . Enfim, enxugadas as lágrimas por um momento, para a comunidade se vestir de festa e devoção.
Amanhã, as nossas gamelas - os nossos barcos galegos - continuarão de proa ao mar.

4 comentários:

Anónimo disse...

Vou comentar este post, como podia comentar qualquer outro do Celestino sobre este tema e que considero deliciosos, por me transmitirem, melhor por me avivarem recordações há muito esquecidas na poeiras dos tempos.
A nossa memória colectiva, a memória de um povo, não se faz apenas com os feitos gloriosos dos lideres; faz-se essencialmente com os contributos anónimos do povo, e são pessoas como o Celestino que enaltecem, que registam para a posteridade, o saber, o querer e o viver destes homens e mulheres que eu fugazmente conheci.

VdaCunha disse...

Lindo, sentido, real,como só sabe contar quem conhece de viver. Que lhe seja longa e feliz. ACunha 15.12.012

VdaCunha disse...

Lindo, sentido, real,como só sabe contar quem conhece de viver. Que lhe seja longa e feliz. ACunha 15.12.012

VdaCunha disse...

Lindo e real como só sabe contar quem conhece de ter vivido. Que a vida lhe seja longa e feliz