terça-feira, 13 de março de 2007

História de um naufrágio

Por Celestino Ribeiro
O desenvolvimento da avenida marginal para norte há uns anos atrás e agora as novas instalações portuárias deram uma perspectiva física diferente da que era o antigo burgo.
No palco do Portinho e como cenário, destacava- se o Forte da Lagarteira, a estação de Socorros a Náufragos, os dois faróis de enfiamento, o nicho do Senhor dos Aflitos . Desde o núcleo fronteiro de casas baixas e sóbrias até ao mar, a nesga de areia branca do varadouro. Aqui e ali, um ou outro pescador dormitava à sombra das embarcações varadas, embalados pelo marulhar ritmado das ondas mansas, como se fossem música para os seus ouvidos.
Saúdo com alegria uma vez mais a concretização do sonho partilhado por gerações de pescadores. Ma s a nostalgia de outros tempos não deixa de me transportar a momentos únicos, ao âmago da alma daquele lugar mítico.
Passar pelo Portinho é para mim sentir um mundo que continua vivo nas minhas recordações e sentimentos, é sentir ainda o pregão das “ praias de sardinha” as histórias contadas pelos velhos sentados sobre a areia, as imprecações, as solidariedades e as desavenças pontuais, os “ banhos dos noivos” anunciados pelo arvorar de bandeiras nos mastros das embarcações, o toque nocturno do corno ou do búzio pelas ruas silenciosas a chamar porque o mar se tinha levantado pondo em risco a segurança das embarcações varadas na praia, e desta vez o toque do corno à viúva que voltava a casar acompanhado do pregão: “ Senhora Maria tenha cautela, que é já a 2ª vez que vai o nabo à panela”, as rezas e conjuros, as superstições, o caco do defumo deixado nas encruzilhadas das ruas. Mas também o Portinho dos gritos e das lágrimas pelos que partiram e não voltaram mais. Como naquele fatídico dia de Agosto, vésperas da festa da Senhora da Agonia em Viana do Castelo.
Havia dias que a nortada “ queimava o mar”. Antes que a tarde se levantasse, era necessário arribar.
Porém, quis a desdita que duas embarcações ancorenses tardassem em regressar por teimosia e circunstâncias adversas: prisões das redes no fundo do mar, desmalhar o peixe e o vento a soprar cada vez com mais intensidade , mar cavado, tudo se conjugava caprichosamente.
No Portinho, a ansiedade aumentava hora a hora, quando alguém vislumbrou a ponta de uma vela sobre o dorso branco de espuma e encapelado do mar. Era o tio Viriato com a sua tripulação. Dezenas de braços solidários ajudaram a puxar o barco para a praia : “ Não viram os nossos?”, perguntou alguém. Os homens do tio Viriato trocaram olhares que denunciavam cumplicidade. Os rostos expressavam ainda a angústia e o medo, os sinais da luta que travaram com os elementos em fúria, o drama vivido e presenciado sem nada poderem fazer. A resposta soltou- se como um suspiro que não libertava da opressão cravada como lança no peito. Era como fugir sem conseguir, tolhidos os passos: “Não, não os vimos” foi a resposta seca combinada.
Mas viram, soube- se muito mais tarde, porque uma testemunha quebrou o pacto estabelecido de esconder a verdade do que se passou. Eles viram naufragar a outra embarcação que adornou por estibordo ao impacto de uma traiçoeira onda, ouviram os seus gritos de pedido de socorro, mas não arriscaram uma tentativa no meio da aflição e do desespero que eles próprios também experimentavam, num esforço indómito pela sobrevivência. Mas este acto – bem o sabiam – seria considerado uma cobardia , que a comunidade piscatória sempre havia de ter presente. E viveram , com efeito, marcados com esse estigma até ao fim dos seus dias.
Eles não tinham hipótese, é certo, e viram desaparecer nas ondas aqueles homens sentindo na alma o desespero e a raiva sem nada poderem fazer. Avançar na direcção dos náufragos seria um verdadeiro suicídio, porque obrigaria a manobrar a vela várias vezes em bordos arriscadíssimos e sucessivos para leste e oeste até conseguirem alcançá- los a barlavento. Estas manobras naquelas condições de tempestade desfeita, seriam irrealizáveis. Mas a lei do mar é implacável. O “ salve- se quem puder” não se aplica aos homens do mar, conscientes do dever da solidariedade até ao limite, até ao risco de sossobrarem todos. “Hoje por eles, amanhã por nós”, é o lema que melhor assenta aos pescadores, quando se trata de socorrer o seu semelhante.
A outra embarcação, onde se encontravam dois filhos do proprietário, o tio José Maria, “ Galinhaço”, perdeu- se com os seus quatro tripulantes. Três deles desapareceram varridos pelas ondas nas profundezas do oceano. Um dos irmãos, que sempre dizia “ caso algum dia lhe acontecesse naufragar, nunca abandonaria a embarcação”, amarrou- se ainda a um banco do barco semi- submerso e à deriva. As ondas cobriram- no repetidíssimas vezes, a angústia, o frio das noites, a hipotermia, a inanição e por fim a morte, foi o seu drama.
Alguns dias depois, perdida toda a esperança num sinal de vida, surgiu à proa de um barco galego a navegar para terra, a imagem sem palavras da tragédia. Era o barco naufragado cheio de água apenas aflorado à superfície com o único náufrago que ainda conseguiu amarrar – se a um dos bancos da embarcação. Dizem que o corpo ainda se mantinha com algum nível térmico, sinal de que resistiu vivo até bem pouco tempo antes de ser encontrado. Seria a única testemunha em condições de relatar o drama do desaparecimento dos seus companheiros e de ver angustiado o outro barco a afastar – se cada vez mais, impulsionado pelo vento forte escondendo – se e surgindo depois sobre o mar desfeito em espuma. Rebocado para La Guardia, foi o seu pai reconhecê- lo.
Este acontecimento teve, ainda, outro desenlace. Não o vamos explorar agora. Fica o registo na memória para mais tarde. Ele traduz o sentimento insuperável da classe, essa incapacidade de dar ao outro o benefício da dúvida, ou de perdoar e esquecer. Quando se colocou a questão de agarrar desesperadamente uma hipótese de sobrevivência, contra o risco certo de perecerem todos se intentassem uma manobra de salvamento, impôs – se um pacto de silêncio para não expor a honra. Mas, quando alguém falou entre a euforia de uns copos e quem o ouviu ficou a saber que o segundo barco viu toda a tragédia e não socorreu a outra embarcação que se afundava abandonando os seus tripulantes ao seu destino fatal, houve quem alimentasse contra aqueles um sentimento de ódio e vingança que teria os seus efeitos nefastos. Foi a dor recolhida por quem perdeu quem amava e não foi capaz de perdoar, nem aceitar compreender e desculpar.
Por ironia , sinto-me entre os dois campos desta tragédia: é que em ambos estavam familiares meus. Perderam – se uns, salvaram – se outros, mas estes viveram incompreendidos por uns e compreendidos por outros, porém, com a dor na alma , o quadro trágico sempre diante dos seus olhos tanto no mar como no silêncio das noites no leito. Nos ouvidos os gritos aflitos de pedido de socorro e a impotência atroz de nada poderem fazer. Como uma perseguição, o anátema de não serem compreendidos por todos. Procurei ser fiel à memória. A afirmação de uma identidade, não pode esconder mas, antes, assumir toda a intensidade das suas luzes e das suas sombras.

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