terça-feira, 13 de março de 2007

REQUIEM PELO “LAGOA”


Por Celestino Ribeiro

Foi com indiferença quase generalizada que há anos assistimos à partida de uma relíquia Eifel da nossa terra: a ponte do caminho de ferro sobre o rio Âncora . Com a mesma indiferença – salvo as raríssimas excepções à regra – também assistimos à partida do salva- vidas “ Lagoa” supostamente para o Museu de Marinha de Lisboa, mas que acabou ingloriamente na margem esquerda do rio Minho junto ao pinhal do Camarido.
Com estes dois exemplos de delapidação injusta e impune do património Ancorense, queremos alertar e prevenir para futuras movimentações com os mesmos fins lesivos - não só do património – mas do seu significado como parte integrante da nossa memória histórica e, devia ser, do nosso orgulho colectivo. Mas parece que até a história nos querem negar, apagando os seus símbolos materiais.
Talvez este alerta não passe de uma voz cujo eco se perde no deserto largo da indiferença e , assim, talvez vejamos aumentar a lista de património e lembranças histórico- culturais abatidas ou simplesmente modificadas e mudadas de lugar em notória e inequívoca alienação da sua identidade com relação a um lugar que lhe deu o nome ou esse memorial deu nome ao lugar. E, a ser assim, como já foi e pode voltar a acontecer, assume uma grande responsabilidade quem o fizer. Talvez até um dia a história se encarregue de denunciar e julgar o que agora se cala e ignora.
Regressando ao fio condutor deste apontamento com o qual pretendemos evocar uma peça fundamental do nosso património histórico – marítimo para sempre perdido – o salva- vidas “ Lagoa” – e a memória dos seus mestres, convido o leitor a situar- se num tempo em que a actividade pesqueira constituía uma indústria da maior importância em termos de ocupação e, consequentemente, de contributo decisivo para o desenvolvimento económico da nossa comunidade que assim se tornou uma referência de gente marinheira no contexto dos burgos piscatórios do país.
A estação do Instituto de Socorros a Náufragos , demolida aquando do prolongamento da avenida marginal para norte , foi instalada a alguns metros do Barracão da Senhora da Bonança e veio substituir a plataforma varadouro existente no Campo do Castelo.
O edifício era rectangular, de duas águas, e tinha uma porta de serviço do lado nascente. Do lado poente, um grande portão dava acesso à embarcação, de onde dois carris paralelos assentes sobre pilares serviam a manobra de entrada e saída do salva- vidas, ou seja, o seu varadouro privativo.
No cimo da empena sul do edifício existia um campanário, cujo sino servia para chamar os tripulantes da embarcação de salvamento, para os treinos de mar ou para prestar socorro. Nestes casos muita gente se apinhava a ajudar a empurrar o barco para o mar, enquanto as mulheres chorosas e aos gritos rogavam junto ao nicho do Senhor dos Aflitos a protecção dos seus homens e o seu regresso a porto e salvamento.
Normalmente a tripulação, exceptuando os seus mestres, era constituída por jovens pescadores que, assim, cumpriam o seu serviço militar.
Do salva- vidas “ Pedro Bogalho” assim baptizado em homenagem ao pescador Pedro Verde – “Bogalho” era o apelido da mãe , natural de A Guardia , e grande impulsionador do primitivo Portinho – foi seu primeiro mestre Firmino Verde, personalidade multifacetada, um dos poucos pescadores que sabia ler e escrever e detinha outros conhecimentos, tais como carpintaria naval e bom relacionamento com as leis em vigor motivo pelo qual era procurador de algumas pessoas e lhes tratava da papelada burocrática.
Com o mestre Firmino Verde , o salva- vidas “ Pedro Bogalho” averbou fama insuperável pela coragem e tenacidade postas à prova em diversos episódios de salvamento de homens e embarcações em perigo.
Seguiram- se como mestres da mesma embarcação de salvamento o Plácido da Silva, o Daniel Fão e o Manuel ( Manca ) na fidelidade aos pergaminhos do seu passado e, ainda , o Manuel Galego que faz a transição do “Pedro Bogalho” para o novo salva- vidas “Lagoa”.
O “ Lagoa” vem para cá no advento das embarcações motorizadas e, portanto, mais seguras e rápidas que a embarcação a remos. Tem, por isso, poucas saídas registadas em termos de socorro, mas detém o símbolo de um testemunho emblemático.
Competia também aos mestres do salva- vidas hastear os sinais convencionais do tempo no mastro do castelo e accionar a ronca do nevoeiro.
Como nota curiosa e fazendo parte do conjunto das superstições da gente do mar herdadas dos seus ancestrais galegos, era costume em dias de nevoeiro, que três virgens moças fossem até à ponta do cais e ali subissem as saias mostrando o rabo voltado para o mar. Diziam que era para espantar o nevoeiro, um perigoso adversário dos homens do mar.
A assinalar o fim trágico de uma embarcação preciosa e rica de significado - o salva – vidas “Lagoa” - peça digna do nosso património histórico - marítimo deixado durante anos a agonizar sem o impulso de uma vontade que lhe restituísse a vida e a beleza da sua herança gloriosa, quero render a minha homenagem aos homens que nessas embarcações se aventuraram para resgatar dos elementos em fúria os seus companheiros naufragados e em risco de naufrágio: os seus mestres e as suas tripulações.

1 comentário:

Anónimo disse...

Ainda me lembro do salva vidas, o Lagoa e do edifício onde estava guardado. Acho que apenas o vi uma vez na água em treino da sua tripulação. Seria interessante ilustrar este post com fotografias alusivas para os mais novos que não tem noção sequer das formas deste salva vidas passem a conhece-lo.