terça-feira, 13 de março de 2007

APENAS CRIANÇAS

Por Celestino Ribeiro


Lembro- me que a letra de uma música dos Delfins diz a dado passo:
“ Quando alguém nasce, nasce selvagem, não é de ninguém”. A afirmação é discutível, mesmo antes de reverter em questão filosófica, porque quando alguém nasce é, para além de si mesmo uma pertença, dos pais , da família, do espaço que o viu nascer. Mas é deste espaço que nos marca indelevelmente - que até na esfera de uma comunhão linguística nos distingue, pelas características do sotaque - que gostaria de partilhar esta coluna.
Com efeito, a minha geração, especificamente aquela que se identifica e circunscreve ao espaço físico e sociológico da borda do mar, era do vento e da água, elementos essenciais do nosso quotidiano, aberto a um horizonte para lá das palavras.
Éramos crianças alegres e irrequietas como as ondas cujo som foi o primeiro a ouvir- se, quando chegamos ainda confusos a este mundo. Crescíamos em bandos e a própria natureza envolvente despertava em nós imaginativas brincadeiras.
Assim, o vento despertava para a construção de pequenas lanchas de cortiça ou, mais elaboradas , de madeira, as quais apetrechávamos com velas. Depois era vê-las singrar de uma margem à outra do rio, velas enfunadas para gáudio dos seus possuidores.
Outras vezes era a construção de pequenas élices de madeira, a que chamávamos de “moínhos de vento”. Pomposamente, colocávamos essas élices numa espécie de tótem, uma vara espetada na areia, no cimo da qual giravam com a força do vento.
Para o mar eram os botes feitos de latão trazido da lixeira a céu aberto do Espirro, no topo norte do Campo do Castelo. Imaginávamos viagens e pescarias, as artes , as tempestades e bonanças, enquanto impulsionávamos os pequenos barcos. Podíamos dizer que nascíamos pescadores , por isso podemos afirmar que um pescador não se faz , nasce pescador. Mas isso levar-nos-ia a outra história.
Também a praia , palco por excelência da nossa infância, despertava o nosso imaginário, e brincávamos com os mesmos barquinhos de latão, inventando outras singraduras sobre as ondulações da areia.
Éramos do vento e do mar e não éramos de ninguém por perto na nossa imensa liberdade. Corríamos como lebres a fugir do cabo do mar, a autoridade marítima que vigiava a praia durante a época balnear e zelava pelos bons costumes.
É que nós brincávamos na areia e tomávamos banho completamente nus, como também não usávamos toalha. O sol secava os nossos corpos curtidos pelo salitre do mar e a roupa de todos ficava amontoada num canto qualquer da praia. Na fuga precipitada cada qual agarrava a peça que lhe viesse à mão. Se fôssemos apanhados pelo cabo do mar, éramos metidos na “casa das ratas” dentro do Forte da Lagarteira durante umas horas. Por isso éramos frequentemente confinados aos Caldeirões, a maior parte da época balnear. Ali sentíamo - nos mais livres e seguros. E a mata próxima sugeria- nos brincadeiras aos cowboys e aos índios: lanças, arcos e flechas de acácia, esconderijos nas dunas, eram uma alternativa aliciante. Depois mais um mergulho no rio Âncora e de novo estendidos sobre a areia escaldante a secar ao sol.
Éramos apenas crianças de vida livre e sadia. Construíamos os nossos brinquedos e brincadeiras à dimensão da nossa fantasia, inspirados pelo vento, pela água e pela praia sempre presentes.
A escola do Rego, a nossa escola, agora demolida para ali instalar a Ludoteca, como demolidas serão as árvores por nós plantadas naquela manhã de sábado sem aulas, traz à nossa memória um método de ensino austero. Era bom aprender – passar de cegos a ver – mas as reguadas naquelas manhãs de frio por causa dos deveres errados, ou por um atraso na chegada à aula, que a chuva impiedosa obrigou a refugiar no abrigo de um muro coberto de heras, o medo do olhar severo do professor, é um registo de recordação negativa que levou há dias o meu amigo e companheiro de infância João Amorim a concluir desta maneira um texto seu : “ ó escola, era por isso que nós não te amávamos” .
Maior , ainda, era o dilema daqueles que amavam a escola como se fosse um farol a rasgar as trevas da ignorância mas não podiam, de modo algum, amar o método das reguadas infinitamente desproporcionais à infracção cometida.
Mas , pessoalmente, estou mais grato à escola por aquilo que lhe devo
- e por isso lhe relevo a dureza do método - porquanto não foi suficiente para abalar em mim o amor pelos livros, nem para deixar marcas de sentimento ressentido.

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