terça-feira, 22 de maio de 2007

MORFOLOGIA DO “LAGOA”

Por Celestino Ribeiro

A insensibilidade cultural e a falta de vontade política local, condenou ao desaparecimento o “Lagoa”, o último salva – vidas do Portinho de Âncora.
Com o barco poveiro há muito tempo extinto do varadouro Ancorense, a gamela ou masseira em fase de extinção e com adaptações de matéria e estrutura que a vão afastando do modelo original, o desaparecimento do salva – vidas “Lagoa” marca o fim das embarcações tradicionais do nosso património histórico – marítimo.
Ao escrever estas linhas, a mágoa invade a minha alma . Um sentimento de impotência ressoa como um grito na solidão do deserto. Com efeito, a indiferença de uns e a resignação de outros , a ignorância daqueles e a desistência destes, é a causa profunda deste estado de alma. Limito – me , pois, a escrever um testemunho para que outros um dia, melhor que nós, saibam resgatar as “ pérolas aos porcos”. Talvez um dia, uma geração mais culta e sensível , mais votada ao espírito do que à barriga, mais orgulhosa da sua pertença e da sua identidade, dê o devido valor e importância ao assunto e desenvolva o seu encontro com a nossa história através da criação das réplicas das nossas embarcações tradicionais, que um dia povoaram o varadouro Ancorense. É com essa esperança que abordo o tema.
O “ Lagoa” era, estruturalmente , uma embarcação da classe das baleeiras com proa curva e a popa fechada, sem painel, uma espécie de outra proa. A diferença em relação a uma vulgar baleeira, consistia no facto de o “ Lagoa” ser maior e mais robusto. Possuía caixas de ar e linha de socorros a náufragos, com flutuadores de cortiça revestidos a lona colocados nos dois bordos, a bombordo e a estibordo , ao nível inferior dos alcatrates.
As suas dimensões eram as seguintes:
Comprimento ( entre perpendiculares ) = 9,50 mts.
Boca ( máxima largura a meio da embarcação) = 2,85 mts.
Pontal ( máxima altura a meio ) = 1,30 mts.
Altura da proa e da ré = 1,80 mts.
Peso = 2 000 Kg

O costado do “ Lagoa “ , ou seja ,o seu corpo de flutuabilidade, era de tabuado trincado ( topos sobrepostos). A quilha, a peça mais importante de qualquer embarcação, a sua espinha dorsal, colocada no sentido longitudinal, era continuada à proa dando forma ao talha – mar, ou roda de proa; à ré , ou popa, o seu seguimento formava o cadaste onde estava fixada a ferragem do leme. As balizas colocadas transversalmente à quilha , eram as peças que formavam o seu esqueleto . Normalmente estas peças subdividiam – se em : caverna, a parte que encosta à quilha; braço, a curva do bojo da embarcação ; e a apostura , a parte da baliza que liga ao braço e onde assentam os alcatrates. No “ Lagoa “ , lembro – me, que as balizas eram constituídas apenas pelas cavernas e os braços, onde assentavam os alcatrates.
Os alcatrates, eram as peças colocadas sobre as balizas para as consolidar e onde eram fixados os bronzes dos toletes para armar os remos , cinco de cada lado do costado aos quais correspondiam cinco bancadas para os remadores. Estas bancadas , eram as peças colocadas na transversal assentes nas extremidades sobre os dormentes e ao meio eram suportadas pelos pés de carneiro, peças de madeira fixadas na vertical tendo por base a quilha.


Próximo da linha de água , a vante da boca, em cada um dos bordos havia duas boeiras de forma quadrada , que serviam para escoar a água. Possuía também robaletes, peças pregadas no sentido proa – popa a bombordo e a estibordo na altura do encolamento, ou seja, da curva do bojo do casco e funcionando como atenuadores do balanço, uma espécie de amortecedores.
O leme , que servia para dar governo à embarcação , tinha as ferragens fixadas em sentido oposto às ferragens do cadaste, ou seja, o macho da parte superior do leme com a fêmea do cadaste e a fêmea da parte inferior do leme com o macho do cadaste. Por sua vez, o leme era dividido em três partes: porta, a parte mais larga; madre, a parte que encosta ao cadaste; e cachola, a parte superior do leme onde entrava a cana do leme , uma espécie de alavanca para movimentar o leme ora para bombordo, ora para estibordo.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

FESTA DE NOSSA SENHORA DA BONANÇA - BREVE HISTÓRIA DUMA DEVOÇÃO

Celestino Ribeiro
Filhos de um país debruçado sobre o azul profundo do oceano, neste extremo sudoeste da Europa – “ onde a terra acaba e o mar começa - , sentimos desde o nascimento a chamada do mar como um impulso irresistível. Nós - os que vivemos neste litoral marcado pela luta sem tréguas do elemento abissal contra a terra firme mas recortada pelo confronto - estamos habituados a ouvir o seu pulsar e a espelhar nele o nosso olhar , ora nostálgico, ora arrebatado num intento de abraçar o infinito. Deixamo- nos embriagar inevitavelmente pelo cheiro da maresia , enquanto saboreamos o seu salitre que vem colar – se aos nossos lábios quase sem nos apercebermos.
Agora, com o olhar preso num ponto do horizonte, despertamos para o sonho, porque o enigma do mar, o seu mistério, está no facto de não podermos ver para além desse mesmo horizonte que nos apela e nos provoca.
E é neste contexto geográfico que nasceram e se desenvolveram as comunidades de pescadores que, desde os primórdios da humanidade, viram no mar uma satisfação e um meio de realização das necessidades materiais como recurso fundamental para a sua subsistência e desenvolvimento económico, mas também uma vocação e um chamado de sentimento e comunicação.
O fio condutor desta nossa história começa no promontório de Montedor – um dos quatro lugares da freguesia de Carreço, no concelho de Viana do Castelo – onde encontramos um antigo e pequeno núcleo de pescadores - lavradores , que tinha uma devoção particular a Nossa Senhora da Bonança e cuja imagem era venerada na sua igreja paroquial.
A importância desta devoção era tão significativa que, foi constituída uma Confraria , cujos Estatutos remontam ao ano de 1727. Era uma Confraria pública de fiéis , com obrigações pias em favor dos irmãos falecidos e ao culto a prestar à Senhora da Bonança.
Mais recente, mas com maior projecção , estabelecia- se em meados do séc. XIX uma comunidade genuína de pescadores no Portinho Ancorense, com origem num primeiro assentamento de galegos de A Guardia, que povoaram o rudimentar varadouro - numa reentrância da costa - com as suas características e originais gamelas querenadas de alcatrão vermelho- escuro.
O regime de nortadas peculiar nesta zona geográfica, empurrava muitas vezes as pequenas embarcações Ancorenses, movidas a remos e vela latina, para sotavento do Portinho obrigando-as a arribar , não com tão pouca frequência , a Montedor. Também registamos a permanência sazonal de gamelas Ancorenses no portinho de Carreço.
Desta relação com Montedor e os seus pescadores - lavradores, também os Ancorenses aprenderam a venerar a Senhora da Bonança tornando- se , até, alguns deles irmãos da sua Confraria.
E, assim, todos os anos, no segundo domingo de Maio – data da Sua festa – os pescadores Ancorenses e suas famílias dirigiam- se em peregrinação a Carreço para venerar a Virgem Senhora da Bonança e pagar as suas promessas.
Foi neste contexto de peregrinar a Carreço por ocasião da festa, que se dá um episódio decisivo para a deslocação desta devoção para VP Âncora, então, ainda, Gontinhães.
É de tradição oral, que um emigrante bem sucedido no Brasil a passar uma temporada na sua terra natal, resolveu escarnecer da crença dos pescadores Ancorenses e da peregrinação que faziam à Senhora da Bonança. Escusado será dizer da reacção dos pescadores, que não se intimidaram só porque a pessoa em questão era abastada. Levou bem que contar como é fácil deduzir.
Porém, imperativos dos seus negócios e propriedades no Brasil, levaram o nosso brasileiro – português destas bandas de volta àquele país. Na viagem de regresso, o navio foi surpreendido por uma violenta tempestade tropical e só milagrosamente não se afundou. No meio dos gritos aflitos da tripulação e dos passageiros e, lembrado da fé dos pescadores Ancorenses à Senhora da Bonança , suplicou que se se salvasse ofereceria a venerada imagem aos pescadoresde quem tinha escarnecido .
E, assim aconteceu. A imagem chegou a VP Âncora pela primeira vez em painel pintado , sendo adquirida depois uma pequenina réplica da imagem de Carreço e colocada num altar oferecido pelos pescadores em 1893 na capela de Nossa Senhora das Necessidades.
A primeira festa à Senhora da Bonança em VP Âncora, foi realizada em 1887, no segundo domingo de Setembro , dia 11 . Aurora Botão Rego diz – citando a notícia de um jornal da época - que a primeira festa se realizou em 1883, (sic) não provando , todavia , a sua continuidade. O certo é que desde 1887 , se regista a realização da festa ininterruptamente e, por essa razão, o centenário foi comemorado em 1987.
Em paralelo com Carreço, mas com sinal distintivo, os pescadores Ancorenses estabeleceram o 2º Domingo de Setembro como data da realização da festa considerando- se, todavia, o dia 8 de Setembro – solenidade litúrgica da Natividade de Nossa Senhora – o seu dia de referência. Do mesmo modo e, também , com marca própria, criaram uma Confraria – a Associação de Nossa Senhora da Bonança – com obrigações pias e preocupações sociais , tendo adquirido para o efeito o ainda hoje denominado Barracão da Senhora da Bonança existente no sítio do Portinho. Trata – se de uma Associação privada de fiéis e, por força desta particularidade canónica, ( associação privada ) se rege pelos seus Estatutos que foram aprovados em assembleia geral no dia 22 de Dezembro de 1928, tendo como órgão deliberativo a Assembleia Geral e o órgão executivo, a Mesa ou Direcção.
Com a ascenção da festa e devoção geral da população local e, particularmente, da gente do mar do Portinho Ancorense à Senhora da Bonança, desaparecia em Carreço essa tradição. O seu testemunho continua vivo em VP Âncora.

Conclusão

A propósito desta devoção Mariana sob a invocação de Senhora da Bonança, refere- se que ela está desde a origem mais remota e conhecida, relacionada com o mar e os pescadores nos lugares onde é venerada.
Voltamos , por isso, a Carreço onde se contam duas lendas referidas à invocação da Senhora da Graça , que têm em comum o facto da Sua imagem ter dado à costa de Carreço, tal como aconteceu com outras imagens que deram às costas de vários países após a Reforma, na sequência do movimento contra o culto das imagens. Com efeito, o hino recolhido e harmonizado pelo prof. Manuel Luís, aponta na parte do povo : “ Senhora da Graça / Que do mar vieste … (citado por P. Lourenço Alves)
Assim, não será que a imagem primitiva da Senhora da Graça derivou para os pescadores de Montedor para a invocação de Senhora da Bonança ? A semelhança iconográfica é significativa e muito comum: Nossa Senhora com o Menino Jesus ao colo . À imagem da Senhora da Bonança , apenas se acrescenta um barco, símbolo dos pescadores. Deste modo, é nosso parecer, que a imagem que os pescadores de Montedor invocaram de Senhora da Bonança e os pescadores Ancorenses assumiram como sua padroeira, veio mesmo do mar.
Esta devoção marcou profundamente a história dos pescadores de VP Âncora, onde continua a ser uma referência incontornável para a classe e para esta vila marítima, que é identificada - por muitos que a sua festa todos os anos atrai -, como a terra da Senhora da Bonança.

quarta-feira, 4 de abril de 2007

O Centro Social e Cultural de Vila Praia de Âncora: 24 anos ao serviço dos Ancorenses






Pedro Ribeiro
Fundado em 8 de Setembro de 1983, o Centro Social e Cultural de Vila Praia de Âncora surge na sequência de várias diligências frustradas junto da Santa Casa da Misericórdia de Caminha no sentido de que fossem dadas respostas sociais especialmente aos idosos de Vila Praia de Âncora e do Vale do Âncora.
Face à ausência de resposta às solicitações da Junta de Freguesia de Vila Praia de Âncora e às diligências da Câmara Municipal de Caminha, no sentido de se estabelecer um plano de acção que permitisse encarar e resolver os problemas da terceira idade, da infância e da juventude, construindo um equipamento colectivo em Vila Praia de Âncora, um grupo de pessoas da vida pública ancorense tomaram a iniciativa de criar uma Instituição Particular de Solidariedade Social nesta vila.
Depois de uma reflexão colectiva sobre os objectivos da associação considerou-se de interesse acrescentar às valências ligadas à solidariedade também a cultura e a formação profissional.
Assim, pode ler-se no artigo 2º dos seus estatutos que “O Centro Social e Cultural de Vila Praia de Âncora tem por objectivos contribuir para a promoção social e cultural da população do Vale do Âncora, bem como criar ocupação de tempos livres da mesma população(...)”.
Esta instituição é composta por dois edifícios construídos de raiz e que tomam o nome de: Centro Social – edifício Norte e vocacionado para a causa da solidariedade social; e Centro Cultural – Edifício Sul vocacionado para as actividades culturais.
Esta instituição assenta as respostas que procura dar às populações em duas vertentes principais:
a) a vertente social, com valências ligadas à infância, juventude e terceira idade designadamente, Jardim de infância, Actividades de Tempos Livres, Centro de Dia, Apoio Domiciliário e Lar de Idosos;
b) a vertente cultural, com a criação de condições para o funcionamento da Biblioteca Fixa da Fundação Calouste Gulbenkian, Auditório, Sala de Exposições e ainda a Academia de Música Fernandes Fão, acrescentando ainda algumas associações que têm a sua sede neste equipamento.
As valências sociais surgiram a partir da análise de necessidades que foi feita no vale do Âncora levando em linha de conta o facto de não existir anteriormente qualquer resposta social às necessidades deste vale no que toca a este particular, pois os técnicos dos serviços regionais da Segurança Social argumentavam com o facto de existirem no concelho de Caminha duas instituições (Caminha e Seixas), o que colocava este município, em comparação com outros do distrito de Viana do Castelo, muito bem colocado em termos de capacidade de resposta. De facto, se nos parece válida esta perspectiva também não deixa de ter relevância o facto de existirem duas instituições no lado norte do concelho de Caminha (Vale do Coura) que detém aproximadamente 60% da população do município e nenhum na vertente sul do concelho onde residem os restantes 40% (Vale do Âncora), considerando que Vila Praia de Âncora é a freguesia mais populosa do concelho com cerca de 25% da população deste município.
Importa, neste particular, referir que o Lar de Idosos do C. S. C. de Vila Praia de Âncora surgiu para suprir uma lacuna no contexto social específico do Vale do Âncora inserido num projecto que envolvia simultaneamente outras valências e várias gerações na tentativa de recriar o ambiente familiar de forma a que os utentes se sentissem em casa. É de lembrar que no Centro Social convivem diariamente idosos (Lar e Centro de Dia) com crianças e jovens (Jardim de Infância e Actividades de Tempos Livres; e ainda os alunos do Pólo 1 da Escola Tecnológica Artística e Profissional do Vale do Minho).
Citando Hespanha (2000;163): “Hoje a tendência é para centros comunitários, porque os centros comunitários são uma resposta integrada, mais participada, e que abrange todas as faixas da população. Agora os centros comunitários é que prestam respostas múltiplas, de acordo com as necessidades locais e com mais intervenção da própria população.”
A área geográfica adstrita a esta instituição não tem contornos muito bem definidos podendo afirmar-se que corresponde ao Vale do Âncora de uma forma geral e à vizinha freguesia de Afife.
No tocante aos serviços sociais oferecidos por esta instituição podemos referir que, das cinco valências, três estão voltadas para a assistência à terceira idade e duas para a infância, sendo maior o número de utentes das segundas que representam 53% do número total de utentes contra os 47% das primeiras.

Estes utentes provêm, relativamente à terceira idade, das freguesias de Vila Praia de Âncora, Âncora, Riba de Âncora, Freixieiro de Soutelo, Amonde, Afife e Caminha; quanto à infância, são oriundos de Vila Praia de Âncora, Âncora, Vile e Riba de Âncora.

terça-feira, 13 de março de 2007

UM OUTRO OLHAR SOBRE O PORTINHO

Por Celestino Ribeiro



Um pescador.
Um pescador Ancorense olha o mar, olha o céu.
Conhece bem o sítio onde vive e o largo mar onde trabalha. Esta qualidade fez- lhe adquirir um saber misterioso.
O seu olhar não poisa noutro lugar. Daqui, do Portinho, olha o mar, olha o céu.
O mar , agora, está baixo, calmo e baixo, na tarde que se aninha em direcção ao poente. O sol já tomba sobre um horizonte pintado de púrpura, os raios em desmaio acenam em jeito de despedida. E na esteira de fogo que se desenha sobre a superfície estanhada do mar, o dia fenece silencioso.
O homem, o pescador Ancorense, sorri. À memória acode- lhe o rifão: “ VERMELHO AO MAR, VELHINHAS A ASSOLHAR”. Amanhã vai fazer bom tempo. E recolhe com satisfação ao barco que o espera baloiçando suavemente amarrado ao cais.
A noite cai serena. As peças da sardinha mergulhadas na água acendem um clarão fluorescente , translúcido, ao serem puxadas para bordo da embarcação. Arde o mar profundo na noite , denunciando o movimento das suas criaturas, as artes de pesca quando a força dos homens e das correntes as agitam. É um fenómeno observado numa parte do ano, quando os dias crescem e as noites encolhem. “ Já pinta” diz o pescador.
A rede vem cheia de sardinha. No céu , um crescente de lua sobe. Está de pé , como uma sentinela vigilante. O pescador olha o céu. O olhar alegra- se. Pode carregar a embarcação, que a calma vai manter- se pois, “ LUA EM PÉ, MARINHEIRO DEITADO “ . Sim, pode ficar descansado o nosso pescador, porque este sinal lhe assegura uma noite bonançosa e um dia seguinte de bom tempo.
Ah ! É Junho, é mês de S. João. E lá diz o velhinho provérbio: “ PELO S. JOÃO, PINGA A SARDINHA NO PÃO”. Sardinha assada nas brasas duma fogueira ateada ao pé da porta da casa do pescador. Que odor apetitoso se espalha, que sabor sobre um pedaço de broa e regada com o tinto imaculado do vale de Âncora. Ah ! A sardinha assada, um pouco de nostalgia, um costume herdado pelo nosso pescador da sua Galiza ancestral.
Agora já é um dia de Julho. A manhã acordou algo cinzenta. O vento é sul moderado. O homem, o pescador Ancorense olha o mar, olha o céu. Está debruçado sobre um vaso pintado cor de prata da balaustrada da avenida marginal. Não desanima : “ SUL ARRASTADOR , NORTE PESCADOR”. Mas há mais nesta época estival: “ SUL DE MANHÃ , NO VERÃO, À NOITE REMO NA MÃO “. Apesar deste vento sul que arrasta nuvens e encobrem o céu, a noite será calma e boa para a pesca.
Outro dia. Corre hoje um mar indefinido cinza- esverdeado à luz duma meia manhã , nuvens esparsas em altitude. Um fundo escuro roçando o horizonte norte. O pescador perscruta esse horizonte distante e recorda o provérbio: “ NORTE ESCURO, SUL SEGURO” . Dali a algumas horas, já de regresso ao Portinho que lhe fica a leste, rema desde a “ Beirada de Fora “ - uma depressão de afloramento rochoso da plataforma continental – quando vislumbra um outro sinal atmosférico sobre o cone do monte de Sta. Trega ( Tecla ) , e não duvida : “STA. TREGA COM CAPELO, CHOVE LOGO OU VENTA CEDO “ .
Com efeito, a meia distância do Portinho, uma ligeira brisa de sul começa a soprar. O homem, o pescador Ancorense, iça a vela e os remos descansam. A surreada ( saraivada de água da ondulação contra a borda da embarcação ) à mistura com a chegada das primeiras precipitações, recebem o nosso homem, o pescador Ancorense, no Sabugo à entrada do ancoradouro do Portinho.
Já a lua da noite anterior prenunciava uma mudança atmosférica. A meia- lua bem destacada no céu em forma de berço dava razão ao adágio: “ LUA DEITADA , MARINHEIRO EM PÉ “. E, ainda, o círculo anelar que a circunscrevia confirmava : “ LUA COM ANEL, CHUVA OU VENTO A GRANEL” . Mais, o céu daquela manhã revestia- se de cirros que não enganavam : “ CÉU ESCAMENTO, OU CHUVA OU VENTO” .
Não é marinheiro o que não olha para o mar e para o céu. O homem do mar conhece a natureza, os elementos do seu universo e do seu campo de actividade. O mar traz- lhe as notícias antecipadas de outras latitudes e de outras longitudes, pelo modo distinto da agitação do seu dorso e o impulso ora revolto , ora suave , das suas ondas.
Conjugado com o aspecto do mar, o céu traz- lhe sinais inequívocos que aprendeu a decifrar. As embarcações à vela de outros tempos, exigiam o olhar atento para o alto, para os aparelhos , os mastros, o massame e o poleame. Mas também para os sinais impressos na abóbada celeste. É por isso que na gíria marítima se diz que “O PORCO NÃO FOI MARINHEIRO, POR NÃO OLHAR PARA O AR “.
Com coisas simples como estas, com esta pedagogia se formava e conformava um pescador crente nas suas tradições e conhecimento empírico. Este é um pequenino exemplo de um universo ainda por explorar.
E o pescador, o pescador Ancorense, deixando a sua gamela varada no Portinho, voltou o seu olhar mais uma vez para o mar, para o céu , e deixou- se perder em pensamentos de regresso a casa.

REQUIEM PELO “LAGOA”


Por Celestino Ribeiro

Foi com indiferença quase generalizada que há anos assistimos à partida de uma relíquia Eifel da nossa terra: a ponte do caminho de ferro sobre o rio Âncora . Com a mesma indiferença – salvo as raríssimas excepções à regra – também assistimos à partida do salva- vidas “ Lagoa” supostamente para o Museu de Marinha de Lisboa, mas que acabou ingloriamente na margem esquerda do rio Minho junto ao pinhal do Camarido.
Com estes dois exemplos de delapidação injusta e impune do património Ancorense, queremos alertar e prevenir para futuras movimentações com os mesmos fins lesivos - não só do património – mas do seu significado como parte integrante da nossa memória histórica e, devia ser, do nosso orgulho colectivo. Mas parece que até a história nos querem negar, apagando os seus símbolos materiais.
Talvez este alerta não passe de uma voz cujo eco se perde no deserto largo da indiferença e , assim, talvez vejamos aumentar a lista de património e lembranças histórico- culturais abatidas ou simplesmente modificadas e mudadas de lugar em notória e inequívoca alienação da sua identidade com relação a um lugar que lhe deu o nome ou esse memorial deu nome ao lugar. E, a ser assim, como já foi e pode voltar a acontecer, assume uma grande responsabilidade quem o fizer. Talvez até um dia a história se encarregue de denunciar e julgar o que agora se cala e ignora.
Regressando ao fio condutor deste apontamento com o qual pretendemos evocar uma peça fundamental do nosso património histórico – marítimo para sempre perdido – o salva- vidas “ Lagoa” – e a memória dos seus mestres, convido o leitor a situar- se num tempo em que a actividade pesqueira constituía uma indústria da maior importância em termos de ocupação e, consequentemente, de contributo decisivo para o desenvolvimento económico da nossa comunidade que assim se tornou uma referência de gente marinheira no contexto dos burgos piscatórios do país.
A estação do Instituto de Socorros a Náufragos , demolida aquando do prolongamento da avenida marginal para norte , foi instalada a alguns metros do Barracão da Senhora da Bonança e veio substituir a plataforma varadouro existente no Campo do Castelo.
O edifício era rectangular, de duas águas, e tinha uma porta de serviço do lado nascente. Do lado poente, um grande portão dava acesso à embarcação, de onde dois carris paralelos assentes sobre pilares serviam a manobra de entrada e saída do salva- vidas, ou seja, o seu varadouro privativo.
No cimo da empena sul do edifício existia um campanário, cujo sino servia para chamar os tripulantes da embarcação de salvamento, para os treinos de mar ou para prestar socorro. Nestes casos muita gente se apinhava a ajudar a empurrar o barco para o mar, enquanto as mulheres chorosas e aos gritos rogavam junto ao nicho do Senhor dos Aflitos a protecção dos seus homens e o seu regresso a porto e salvamento.
Normalmente a tripulação, exceptuando os seus mestres, era constituída por jovens pescadores que, assim, cumpriam o seu serviço militar.
Do salva- vidas “ Pedro Bogalho” assim baptizado em homenagem ao pescador Pedro Verde – “Bogalho” era o apelido da mãe , natural de A Guardia , e grande impulsionador do primitivo Portinho – foi seu primeiro mestre Firmino Verde, personalidade multifacetada, um dos poucos pescadores que sabia ler e escrever e detinha outros conhecimentos, tais como carpintaria naval e bom relacionamento com as leis em vigor motivo pelo qual era procurador de algumas pessoas e lhes tratava da papelada burocrática.
Com o mestre Firmino Verde , o salva- vidas “ Pedro Bogalho” averbou fama insuperável pela coragem e tenacidade postas à prova em diversos episódios de salvamento de homens e embarcações em perigo.
Seguiram- se como mestres da mesma embarcação de salvamento o Plácido da Silva, o Daniel Fão e o Manuel ( Manca ) na fidelidade aos pergaminhos do seu passado e, ainda , o Manuel Galego que faz a transição do “Pedro Bogalho” para o novo salva- vidas “Lagoa”.
O “ Lagoa” vem para cá no advento das embarcações motorizadas e, portanto, mais seguras e rápidas que a embarcação a remos. Tem, por isso, poucas saídas registadas em termos de socorro, mas detém o símbolo de um testemunho emblemático.
Competia também aos mestres do salva- vidas hastear os sinais convencionais do tempo no mastro do castelo e accionar a ronca do nevoeiro.
Como nota curiosa e fazendo parte do conjunto das superstições da gente do mar herdadas dos seus ancestrais galegos, era costume em dias de nevoeiro, que três virgens moças fossem até à ponta do cais e ali subissem as saias mostrando o rabo voltado para o mar. Diziam que era para espantar o nevoeiro, um perigoso adversário dos homens do mar.
A assinalar o fim trágico de uma embarcação preciosa e rica de significado - o salva – vidas “Lagoa” - peça digna do nosso património histórico - marítimo deixado durante anos a agonizar sem o impulso de uma vontade que lhe restituísse a vida e a beleza da sua herança gloriosa, quero render a minha homenagem aos homens que nessas embarcações se aventuraram para resgatar dos elementos em fúria os seus companheiros naufragados e em risco de naufrágio: os seus mestres e as suas tripulações.

PROA AO MAR

Por Celestino Ribeiro
Nortada, brisa desfeita, mar de barbalhão. Mar branco de espuma, as carrouqueiras erguiam- se espicaçadas pelo vento cavando o dorso do mar. A espuma branca e fervilhante da ondulação metia respeito como as barbas de S. Telmo. Mas o poente é de jeito, mascatos voando em acrobacias estonteantes penetram na água , gaivotas em alvoroço, sardinha, muita sardinha, vai o mar cheio. O jeito que vai no mar não engana.
Depressa, varas estendidas na areia, rolos em cima e a gamela a deslizar sobre eles.
- Vai, vai, para baixo todos os santos ajudam!
- Vem malhouco, agora, empurra, salta. Vamos com Deus!
Algumas remadas e o Sabugo é alcançado, espuma dispersa da raiva do vento que as ondas desfaz.

- Vamos marear! – grita o arrais. Agora, enverga, pano estendido de proa à ré, amarra os envergues à verga alongada, lestos os aparelhos . – Arvorar o mastro, ostagar . Iça, iça, retesa os caçoilos , colhe a escota, teza o socairo . O leme, o leme já está ferrado , a cana do leme enfiada na cachola.
Roupa de oleado ajustada ao corpo , sueste a cobrir a cabeça salpicada de vento e de mar, alerta constante, vai a bolinar.
Força gamelinha, o jeito vai a noroeste pelo Lago, a Parede, os Carvalhinhos.
Ah ! Mar de Deus, a surreada é de proa à ré, a gamela adorna por bombordo, a água entra pela borda metida. A vela latina é grande e perigosa, exige muita perícia e experiência nestas condições de nortada forte e mar encrespado, mas aguenta – se.
- Rapaz, escoa a água!
E o rapaz, iniciado, agarra - se a bombordo tiritando de frio e de medo, empunha a cunha ( bartedouro ) e zás, zás, pressuroso escoa a água .
- Para estibordo! - grita o arrais – depressa rapaz, vai adornar .
A vela quase toca na água , a gamela quase se volta, o rapaz encheu os canecos, aturdido pelo rugido do mar e os gritos do arrais , indefeso e molhado como uma sopa. Na boca o sabor amargo do sal e da vida que abraçou.
Manobra para arribar, proa à linha de vento. A água é muita a bordo: -Escoa, escoa . Ufa, que susto!
Agora, de novo à bolina, mais uma bordada a nordeste e outra mais a noroeste . – Virar, virar! – Ah ! gamelinha, vela latina em barco masseira, estrutura românica , testeiro de proa, testeiro de ré, grande leme para compensar o fundo chato.
- É melhor rizar, tio Rifeiro.
- Não – responde – não vamos rizar, a gamela aguenta, nós aguentamos, podeis confiar, asseguro –vos. Logo o sol cai na água , temos de chegar depressa aonde vai o jeito.
- Então, que a Senhora da Bonança nos ajude.
É o último bordo, emposta a noroeste, mais surreada forte, verga a gemer contra o mastro firme , o vento a rugir nas adriças, pano cheio, proa ao mar.
- Vamos arrear! Aproa, colhe a escota, enrola o pano.

Mastro e verga descansam agora sobre a forqueta. O leme repousa sobre o testeiro e o banco de ré. O rapaz estava extenuado. Que bem sabia bater uma sorna ali debaixo do leme , abrigado . Mas o trabalho vai continuar.
- Vamos largar com Deus.
E as peças - as redes da sardinha - saem pela polé, à proa, boiréu, após boiréu, sineiras retesadas . Então , o sol baixinho , despede- se e o dia fenece. A nortada amaina , adormece com o sol perdido no desmaio do horizonte.
O assejo é breve, já há boireis mergulhados na água puxados com o peso suplementar das redes . A sardinha está nas malhas como o cabelo.
- Vamos alar!
As redes são agora um grosso rolo a entrar para bordo puxadas por braços renovados de força e entusiasmo. Chegam carregadas de sardinha , vivinha, brilhante como a prata, agitada e aflita. Enche –se a pana , a gamela tem a proa afocinhada até à matrícula.
- Seja louvado Nosso Senhor Jesus Cristo! Para hoje já está e para amanhã Deus dará.

Agora a remos para o Portinho. Não há vento para a vela.
O silêncio da noite é cortado pelo esforço dos remos , o ruído peculiar do impacto das pás contra a água, das orelheiras enfiadas nos toletes e do arfar dos remadores. A proa chata corta o mar com dificuldade e, com o peso, amorrinha mais ao impulso e cadência das remadas. A luz mortiça do cigarro denuncia o fumador inveterado.
Horas a remar: - oh ! S. Bento dai vento - mas só um gracejo a animar responde: - Ai , Alentejo da minha alma, arma os remos que está calma.
Depois, o cheiro quente dos pinheiros trazido pelo balbuciar duma suave e fugaz aragem de leste. É o bafo da terra que respira muito próxima.
Faróis enfiados , Portinho adentro. - Encosta, encosta, vamos varar.
- Não, encosta só que a maré está a baixar e, logo, a gamela fica encalhada no lugar da venda e do escochamento da sardinha .
Ali, sobre a areia deixada pela maré em seco, descansa agora a gamela, como um guerreiro no fim da batalha.
O clarão da alva ergue – se , diáfano, imaculado e já corre o pregão da Maria da Júlia a cortar o silêncio das ruas estreitas e desertas, ainda submersas na quietude matinal.
- Ó putas … levantai – vos da cama que os vossos homes já chegaram . É uma praia de sardinha , vivinha como a prata, graças a Deus!
E logo o bulício característico, o cheiro, as imprecações à mistura com devoções, o Guarda Fiscal que é gatuno e impõe um dízimo pesado que entrega ao roleiro indignado, aquela peixeira que quer mais seis mãos ( um quarteirão de sardinhas ) sobre meio cento alegadamente por lhe terem faltado sardinhas na venda do dia anterior: - ai a ladra ! - Mas, depois, tudo bem após uma corrida de “vai- te foder…, vai trabalhar”, em tom muito jucoso .
Ah ! E o pobre que pede encostado à proa do lado de fora, olhar faminto e guloso. Sim, dar ao pobre para comer , que quando Deus dá , dá para todos.
As sardinhas que estão no foquim são para a caldeirada. E que não esqueça o quinhão da Santa.
Que grande semana! Dá para comprar camisola e calças novas , pôr uma mesa de rico, beber uns copos e divertir – se. É a festa da Senhora da Bonança, as bandas de música, a feira de atracções, a capela iluminada , tão bonita, os foguetes a estoirar no ar, o fogo preso e de artifício, os bailaricos , o arraial, a procissão junto ao Portinho . Enfim, enxugadas as lágrimas por um momento, para a comunidade se vestir de festa e devoção.
Amanhã, as nossas gamelas - os nossos barcos galegos - continuarão de proa ao mar.

PARA A HISTÓRIA TRÁGICO – MARÍTIMA ANCORENSE

Por Celestino Ribeiro
Dos tempos mais remotos , achados arqueológicos indiciam o desenvolvimento de actividades pesqueiras nas reentrâncias do litoral rochoso da nossa costa, realizadas pelo homem pre- histórico. Não conhecemos, todavia, a dimensão dessa indústria, nem se utilizavam embarcações nessa actividade marítima. Mas podemos imaginar que, à semelhança dos oestrymnios deste noroeste peninsular, o homem primitivo que habitou nas margens das rias galegas construiu embarcações de peles de animais e que ousou fazer- se mais ao largo da penedia costeira.
Os tempos posteriores, da Reconquista à fundação desta comunidade sobre as antigas “villages” de origem românica e sobreviventes das invasões muçulmanas, dão- nos a notícia de um assentamento agrário mas omite qualquer referência a uma actividade pesqueira elaborada.
Todavia, no início do séc. XIX, antes do estabelecimento de uma comunidade de pescadores galegos, já existiam camboas construídas para a captura de peixes e se havia desenvolvido a prática da apanha do sargaço como fertilizante para o amanho das terras. Eram os proprietários rurais que exerciam esse labor e, coadjuvados pelos seus assalariados, construíram na pequena reentrância natural do portinho Ancorense as pequenas arrecadações de apoio sobre as primitivas dunas do lugar. O último testemunho dessas arrecadações do sargaço e rudimentares ferramentas de pesca, é o conhecido “ Barracão da Senhora da Bonança” inicialmente de cobertura de folha de zinco que, mais tarde, foi adquirido pela Associação de Nossa Senhora da Bonança, uma Confraria de Pescadores.
Cremos que as outras arrecadações, mais antigas, eram de dimensões bastante inferiores, a julgar pelas áreas de ocupação reduzidas das habitações dos pescadores que nelas tiveram origem, assim como as “casinhas” e as “caldeiras” onde os pescadores guardavam os apetrechos de pesca e curavam as redes, ( “ encascar” com a tinta extraída artesanalmente da casca de salgueiro, que era esmagada em pias de pedra e depois cozida ).
O assentamento da primitiva comunidade galega de pescadores na segunda metade do séc. XIX, está na origem do desenvolvimento de uma importante indústria de pesca e do alvorecer de uma comunidade de pescadores ancorenses resultante da segunda geração de galegos que conservou a sua matriz endogâmica , raramente beliscada.
Não cabe aqui desenvolver o relato pormenorizado das origens do Portinho como comunidade específica , nem é esse o nosso propósito neste modesto contributo.
Já nos finais do séc. XIX, destaca- se a figura quase lendária de Pedro Bogalho, cuja origem ancestral é galega. A sua acção mais relevante e conhecida, foi a célebre intervenção junto do governante real de passagem por Gontinhães em direcção a Caminha onde se dirigia. Fazendo parar a carruagem, Pedro Bogalho pediu- lhe um “porto de mar” para poder matar a fome aos filhos e, em seguida, para espanto de toda a comitiva, ofereceu- lhe uma caldeirada de sardinhas, facto que o governante agradeceu e fez questão de sublinhar que, em toda a costa portuguesa que visitou, ninguém lhe tinha oferecido uma caldeirada de sardinhas. E ali mesmo, o governante lhe prometeu o “porto de mar” que pedia.
Pedro Bogalho era um homem de horizontes largos, temperado na dureza da vida e trabalho no mar, espírito solidário e singular capacidade de liderança. O primeiro barco salva- vidas desta praça recebeu o nome de “Pedro Bogalho” como homenagem da classe ao homem que reconhecia. Firmino Verde foi mestre desta embarcação, tendo- lhe sucedido o Manuel Galego também mestre do terceiro e último barco salva- vidas, o “Lagoa”.
Também o largo que hoje ostenta o nome de Pedro Bogalho, foi uma feliz ideia para lembrar a grandeza de um carácter e o vínculo a uma pertença. Talvez não tenha sido um Cego do Maio poveiro mas, seguramente o indicador determinado de um rumo que agora vê desabrochar o maior investimento público - nunca é demais lembrar - dos últimos anos em Vila Praia de Âncora. Referimo- nos concretamente às obras do novo Porto de Abrigo e marina náutica.
Esta obra sucessivamente prometida e sempre adiada primeiro, com o argumento da inviabilidade económica e, agora mesmo, com a alegada inexistência de profissionais de pesca para rentabilizar e justificar o investimento, é a prova da miopia de alguns e da esperança de muitos.
Uma terra que o mar tão profundamente marcou, não pode ignorar o coro de vozes que ressoa naquele lugar, naquelas ruas estreitas que o modernismo descaracterizou. São as vozes daqueles que partiram e nunca mais voltaram ao berço sagrado do Portinho. Junto ao nicho do Senhor dos Aflitos, as lágrimas vertidas de desespero e desconsolação , misturam – se soluçantes com o fragor das ondas.
Seria justo e digno pois, - o que até não é inédito – levantar um memorial à ousadia e ao heroísmo dos pescadores ancorenses que pereceram no mar. Uma pedra arrancada que fosse às primitivas estruturas do portinho, para lembrar as tragédias que no séc. XX se cifraram em quarenta e um pescadores mortos no mar. Ao menos uma pedra em sua memória, seria o mínimo pedido. E poderíamos contar como eles eram, as histórias dos seus naufrágios, as palavras como se despediram em terra para não mais voltar, os pressentimentos e premonições sei lá, o último olhar que o mar reclamava. Também o luto, o silêncio de chumbo, as lágrimas irrepremíveis , as famílias na dor e desolação, os pais , os filhos, os irmãos, os amigos que se foram sem dizerem adeus, porque só estranha e misteriosamente pressentido.
Numa terra onde se sente a ausência de monumentos civis evocativos ( 95% dessas peças são de referência religiosa ) uma grave lacuna esconde o conhecimento da nossa história colectiva que os poderes públicos locais , pessoas e associações têm a obrigação de promover , dotando-a de sinais de referência para a posteridade, para que os vindouros conheçam e se orgulhem da sua pertença e da sua identidade ancorense.
Se já a toponímia de Vila Praia de Âncora deixa em grande parte muito a desejar por não privilegiar figuras e acontecimentos locais as referências de estilo escultural e arquitectónico são de uma ausência confrangedora . Estas referências são de relevante importância para a dignificação da nossa terra , o postal evocativo da nossa caminhada colectiva no tempo, o orgulho pela nossa história que nos contempla e nos desafia de impulso ao futuro .

O ROSTO ASSOCIATIVO DOS PESCADORES ANCORENSES

Por Celestino Ribeiro




Sempre numa linha de continuidade das tradições dos seus ancestrais galegos de A Guardia, os pescadores Ancorenses sentiram o desejo de criar vínculos associativos para melhor e mais organizados responderem aos apelos e necessidades impostas pelas exigências dos tempos e, particularmente da sua condição condição social.
Eles, os pescadores Ancorenses – estamos em 1928 – conheciam dos seus pais e avós naturais de A Guardia a remota “Cofradia de Sta Tecla” , a associação dos pescadores guardeses , cuja santa era e ainda hoje é, venerada numa pequena capela no alto do monte de Sta. Tecla, e o papel que esta associação desenvolvia tanto a nível religioso como social e cultural no ambiente da comunidade marítima.
Assim nasceu em VP Âncora a denominada “ ASSOCIAÇÃO DE NOSSA SENHORA DA BONANÇA” , que se assume canonicamente como uma “associação privada de fiéis” logo, distinta de outras confrarias ao tempo existentes e da confraria da Senhora da Bonança de Carreço de onde veio a devoção à Senhora da Bonança, mas não a inspiração associativa. Esta era uma “associação pública de fiéis” .
Convém aqui esclarecer, que nos termos do Direito Canónico existem dois tipos de associações bem diferenciados: as “associações públicas” sempre presididas pelos párocos e com fins estritamente piedosos e as “ associações privadas” que, para além de se lhes reconhecer o direito de encargos pios, são em tudo semelhantes às associações de direito civil. Com efeito, os seus órgãos directivos são a Direcção ( órgão executivo ) e a Assembleia Geral ( órgão deliberativo ) . Nestas, a autoridade eclesiástica tem a missão de velar pelo cumprimento dos Estatutos e da vontade dos fundadores.
E é precisamente no cumprimento dos Estatutos, que a Direcção decide adquirir o imóvel designado por “ Barracão da Senhora da Bonança” , sito na rua 13 de Fevereiro nº 2 junto ao Portinho, cuja outorga do título de aquisição foi lavrado no dia 8 de Janeiro de 1935, a fls. 77v do livro 38 do Cartório Notarial de Caminha.
Este imóvel foi, assim, a Sede da Associação, da Comissão de Festas e da Mútua dos pescadores Ancorenses. Só não se concretizou a criação de uma ou mais escolas para ministrar instrução aos seus associados , como é referido no nº 2 do artigo 3º dos Estatutos.
No plano assistencial , que diríamos hoje de solidariedade social, viveram no anexo do Barracão a “ lídia Pregueira” e depois o “ tio Bexiga”. Como curiosidade, a lídia pagava 15 escudos de renda em 1955 ao Manuel Galego ( administrador ) , que depois este entregava à D. Lina para pôr no peteiro do altar da Senhora da Bonança. Um feixe de lenha vendia- se nesse tempo por 12 escudos e 50 centavos.
Após o 25 de Abril , o Barracão continuou a ser sede da Comissão de Festas e do Sindicato Livre dos Pescadores de VP Âncora.
Em 16 de Novembro de 1989 foi efectuada uma escritura de justificação notarial que se destinava a corrigir o título de aquisição do Barracão. Este acto desencadeou um processo judicial que terminou com o reconhecimento da propriedade à Associação de Nossa senhora da Bonança, como era de pleno direito.
Compete agora aos associados , aos pescadores, dar continuidade à obra dos seus avós, cujo dinamismo foi capaz de erguer um património e sonhar um objectivo de interesse colectivo. Contrariar e criar dificuldades a este direito inalienável da classe piscatória em particular, é trair a vontade dos fundadores e daqueles que lutaram por esta causa.
No período controverso iniciado em 1989, mais por desconfiança de propósitos do que por outra razão, ainda alguns pescadores instituíram uma associação civil que deram como Sede o Barracão da Senhora da Bonança e se designou como “ Associação dos Homens do Mar de VP Âncora” e, ainda, tomando por base os Estatutos da Associação de Nossa senhora da Bonança, que acabou por não vingar.
Actualmente está instituída uma nova associação de pescadores que congrega profissionais da pesca e desportivos e se designa por isso mesmo de “ Associação de Pescadores Profissionais e Desportivos de VP Âncora”, com sede num pouco digno cubículo do anfiteatro do Campo do Castelo.
O estado actual do Barracão da Senhora da Bonança é de completa degradação e insalubridade, situação que urge resolver.

MEMÓRIA DA VELA LATINA ANCORENSE

Por Celestino Ribeiro
O sol da meia tarde daquele dia ameno de Julho era um ponto luminoso de brilho indefinido no centro de um círculo nebuloso e compacto. Na soleira da porta da taberna alguns pescadores comentavam por entre duas fumaças do cigarro de tabaco da pana feito manualmente:
- O sol leva círculo, vamos ter volta de tempo ! – vaticinou o experiente tio Marrucha.
Com efeito, a nortada habitual daquele período das festas de S. Bento tinha amainado bruscamente e o mar apresentava – se com calma estanhada.
No Portinho, as gamelas baloiçavam inquietas à espera dos seus tripulantes. As velas que estiveram a secar estendidas no Campo do Castelo e ao abrigo da muralha sul do Forte da Lagarteira, tinham sido recolhidas ainda quentes e dobradas num molho. Como estava calma não foram envergadas e descansavam à ré abrigadas por debaixo do grande leme rectangular que repousava entre o testeiro e o banco da popa.
- Vamos com Deus ! – saudou o arrais – e todos levaram a mão à boina descobrindo – se à saída do Portinho. Remava –se cadenciada e vigorosamente rumo a sudoeste. A experiência , indicava que aquela calma repentina do início da tarde com cessação da nortada, augurava uma mudança de ventos do quadrante sudoeste. Havia que rumar a barlavento. As gaivotas voavam alto, primeiro em círculos , depois inflectindo decididamente para norte rumo às ilhas Cies.
O sol já estava a um palmo da linha do horizonte, agora no meio de um arrebol de tons binários , violáceos e alaranjados.
- O sol cai doente, camaradas – comentou o arrais com olhar pensativo.
Mas a calma continuava. As peças , as redes da sardinha, corriam borda fora através da polé e mergulhavam no mar plúmbeo apenas matizado por uma ou outra centelha da luz crepuscular .
Agora era só esperar pelo assejo que começava quando a água pintasse.
Sobre os montes distantes erguia – se pressurosa a lua em quarto crescente bem adiantado. Por volta da meia- noite um anel nebuloso envolvia a lua . E lua com anel – dizia o velho rifão – chuva e vento a granel.
- Vamos a ela , camaradas! – ordenou de improviso o experimentado arrais. E logo começaram a puxar a pernada que amarrava à cuba da rede. Então, começaram a aparecer na noite escura, polé dentro , as sardinhas reluzentes de prata e agitadas que, uma vez desmalhadas , iam enchendo a pana.
Entretanto, as estrelas deixaram de se ver, a lua também, a espaços cada vez maiores. Pequenos malhoucos começaram a embater nos costados da gamela , enquanto uma aragem ainda fraca de sudoeste se fazia sentir.
As duas primeiras peças estavam aladas e já o vento aumentara de intensidade. As primeiras ondulações desfeitas começaram a aparecer , tingindo o mar escuro de espuma branca . Um relâmpago cruza o céu , iluminando um mar revolto. As ondas roncavam aos ouvidos , a surreada entrava borda dentro e obrigava a empunhar a cunha com pertinácia para escoar a água da embarcação.
- Força rapazes, vamos meter as redes a feixe e molho . Desmalhamos em terra ! – gritou o arrais.
Metidas as redes a bordo com a sardinha nas malhas, o mar encapelado, relâmpagos , vento e chuva a sacudir a frágil embarcação , já de si metida de proa com o peso da pescaria, havia que fazer rumo ao Portinho.
- Vamos marear de vela! – ordenou com firmeza o arrais.
- Enverga, leme ferrado, iça, iça, colhe a amura – eram ordens que se sucediam em frenesim gritadas no meio da tempestade, surreada de uma lado e de outro, gamela adornada, ora subindo e descendo nas ondas.
- Tone Chapa , vamos navegar no fim da roda ? – interrogou o ti Alfredo Água Borna – é muito perigoso, não podemos orçar !
- Eu sei – respondeu o veterano Tone Chapa – mas não temos outra hipótese, o Portinho fica- nos a nordeste, a sotavento daqui. Confiai em mim, o leme vai em boas mãos. Que a Senhora da Bonança nos proteja. Tu, Alfredo, fica de olho com a adriça pronta a arrear a vela se a gamela afocinhar perigosamente. Os rapazes venham para a ré.
Foi um regresso dramático , coração na boca , preces nos lábios, imprecações, tensão permanente. O tio Alfredo demonstrava as suas qualidades de marinheiro, manobrando a vela com experimentada perícia. A água que entrava era escoada com tudo o que servisse. Até o foquim onde se guardava a bucha , a linha de mão, o sebeiro da rocega e a agulha de marear, servia nessa tarefa tenaz.
A vela latina, sempre exigente, mais agora a navegar em fim de roda , verga em cruz ao jeito de redondo exigia , ainda, uma perícia maior.
O Portinho foi alcançado. A coragem , a experiência e a mestria de navegar com vela latina em embarcações de fundo chato e testeiros quadrados como é a gamela, atestam a competência técnica dos pescadores Ancorenses de antanho. Este escol constituiu a marca que muitos deles levaram aos lugres e dóris da lendária Frota Branca nos mares ventosos do Atlântico norte.

História de um naufrágio

Por Celestino Ribeiro
O desenvolvimento da avenida marginal para norte há uns anos atrás e agora as novas instalações portuárias deram uma perspectiva física diferente da que era o antigo burgo.
No palco do Portinho e como cenário, destacava- se o Forte da Lagarteira, a estação de Socorros a Náufragos, os dois faróis de enfiamento, o nicho do Senhor dos Aflitos . Desde o núcleo fronteiro de casas baixas e sóbrias até ao mar, a nesga de areia branca do varadouro. Aqui e ali, um ou outro pescador dormitava à sombra das embarcações varadas, embalados pelo marulhar ritmado das ondas mansas, como se fossem música para os seus ouvidos.
Saúdo com alegria uma vez mais a concretização do sonho partilhado por gerações de pescadores. Ma s a nostalgia de outros tempos não deixa de me transportar a momentos únicos, ao âmago da alma daquele lugar mítico.
Passar pelo Portinho é para mim sentir um mundo que continua vivo nas minhas recordações e sentimentos, é sentir ainda o pregão das “ praias de sardinha” as histórias contadas pelos velhos sentados sobre a areia, as imprecações, as solidariedades e as desavenças pontuais, os “ banhos dos noivos” anunciados pelo arvorar de bandeiras nos mastros das embarcações, o toque nocturno do corno ou do búzio pelas ruas silenciosas a chamar porque o mar se tinha levantado pondo em risco a segurança das embarcações varadas na praia, e desta vez o toque do corno à viúva que voltava a casar acompanhado do pregão: “ Senhora Maria tenha cautela, que é já a 2ª vez que vai o nabo à panela”, as rezas e conjuros, as superstições, o caco do defumo deixado nas encruzilhadas das ruas. Mas também o Portinho dos gritos e das lágrimas pelos que partiram e não voltaram mais. Como naquele fatídico dia de Agosto, vésperas da festa da Senhora da Agonia em Viana do Castelo.
Havia dias que a nortada “ queimava o mar”. Antes que a tarde se levantasse, era necessário arribar.
Porém, quis a desdita que duas embarcações ancorenses tardassem em regressar por teimosia e circunstâncias adversas: prisões das redes no fundo do mar, desmalhar o peixe e o vento a soprar cada vez com mais intensidade , mar cavado, tudo se conjugava caprichosamente.
No Portinho, a ansiedade aumentava hora a hora, quando alguém vislumbrou a ponta de uma vela sobre o dorso branco de espuma e encapelado do mar. Era o tio Viriato com a sua tripulação. Dezenas de braços solidários ajudaram a puxar o barco para a praia : “ Não viram os nossos?”, perguntou alguém. Os homens do tio Viriato trocaram olhares que denunciavam cumplicidade. Os rostos expressavam ainda a angústia e o medo, os sinais da luta que travaram com os elementos em fúria, o drama vivido e presenciado sem nada poderem fazer. A resposta soltou- se como um suspiro que não libertava da opressão cravada como lança no peito. Era como fugir sem conseguir, tolhidos os passos: “Não, não os vimos” foi a resposta seca combinada.
Mas viram, soube- se muito mais tarde, porque uma testemunha quebrou o pacto estabelecido de esconder a verdade do que se passou. Eles viram naufragar a outra embarcação que adornou por estibordo ao impacto de uma traiçoeira onda, ouviram os seus gritos de pedido de socorro, mas não arriscaram uma tentativa no meio da aflição e do desespero que eles próprios também experimentavam, num esforço indómito pela sobrevivência. Mas este acto – bem o sabiam – seria considerado uma cobardia , que a comunidade piscatória sempre havia de ter presente. E viveram , com efeito, marcados com esse estigma até ao fim dos seus dias.
Eles não tinham hipótese, é certo, e viram desaparecer nas ondas aqueles homens sentindo na alma o desespero e a raiva sem nada poderem fazer. Avançar na direcção dos náufragos seria um verdadeiro suicídio, porque obrigaria a manobrar a vela várias vezes em bordos arriscadíssimos e sucessivos para leste e oeste até conseguirem alcançá- los a barlavento. Estas manobras naquelas condições de tempestade desfeita, seriam irrealizáveis. Mas a lei do mar é implacável. O “ salve- se quem puder” não se aplica aos homens do mar, conscientes do dever da solidariedade até ao limite, até ao risco de sossobrarem todos. “Hoje por eles, amanhã por nós”, é o lema que melhor assenta aos pescadores, quando se trata de socorrer o seu semelhante.
A outra embarcação, onde se encontravam dois filhos do proprietário, o tio José Maria, “ Galinhaço”, perdeu- se com os seus quatro tripulantes. Três deles desapareceram varridos pelas ondas nas profundezas do oceano. Um dos irmãos, que sempre dizia “ caso algum dia lhe acontecesse naufragar, nunca abandonaria a embarcação”, amarrou- se ainda a um banco do barco semi- submerso e à deriva. As ondas cobriram- no repetidíssimas vezes, a angústia, o frio das noites, a hipotermia, a inanição e por fim a morte, foi o seu drama.
Alguns dias depois, perdida toda a esperança num sinal de vida, surgiu à proa de um barco galego a navegar para terra, a imagem sem palavras da tragédia. Era o barco naufragado cheio de água apenas aflorado à superfície com o único náufrago que ainda conseguiu amarrar – se a um dos bancos da embarcação. Dizem que o corpo ainda se mantinha com algum nível térmico, sinal de que resistiu vivo até bem pouco tempo antes de ser encontrado. Seria a única testemunha em condições de relatar o drama do desaparecimento dos seus companheiros e de ver angustiado o outro barco a afastar – se cada vez mais, impulsionado pelo vento forte escondendo – se e surgindo depois sobre o mar desfeito em espuma. Rebocado para La Guardia, foi o seu pai reconhecê- lo.
Este acontecimento teve, ainda, outro desenlace. Não o vamos explorar agora. Fica o registo na memória para mais tarde. Ele traduz o sentimento insuperável da classe, essa incapacidade de dar ao outro o benefício da dúvida, ou de perdoar e esquecer. Quando se colocou a questão de agarrar desesperadamente uma hipótese de sobrevivência, contra o risco certo de perecerem todos se intentassem uma manobra de salvamento, impôs – se um pacto de silêncio para não expor a honra. Mas, quando alguém falou entre a euforia de uns copos e quem o ouviu ficou a saber que o segundo barco viu toda a tragédia e não socorreu a outra embarcação que se afundava abandonando os seus tripulantes ao seu destino fatal, houve quem alimentasse contra aqueles um sentimento de ódio e vingança que teria os seus efeitos nefastos. Foi a dor recolhida por quem perdeu quem amava e não foi capaz de perdoar, nem aceitar compreender e desculpar.
Por ironia , sinto-me entre os dois campos desta tragédia: é que em ambos estavam familiares meus. Perderam – se uns, salvaram – se outros, mas estes viveram incompreendidos por uns e compreendidos por outros, porém, com a dor na alma , o quadro trágico sempre diante dos seus olhos tanto no mar como no silêncio das noites no leito. Nos ouvidos os gritos aflitos de pedido de socorro e a impotência atroz de nada poderem fazer. Como uma perseguição, o anátema de não serem compreendidos por todos. Procurei ser fiel à memória. A afirmação de uma identidade, não pode esconder mas, antes, assumir toda a intensidade das suas luzes e das suas sombras.

APENAS CRIANÇAS

Por Celestino Ribeiro


Lembro- me que a letra de uma música dos Delfins diz a dado passo:
“ Quando alguém nasce, nasce selvagem, não é de ninguém”. A afirmação é discutível, mesmo antes de reverter em questão filosófica, porque quando alguém nasce é, para além de si mesmo uma pertença, dos pais , da família, do espaço que o viu nascer. Mas é deste espaço que nos marca indelevelmente - que até na esfera de uma comunhão linguística nos distingue, pelas características do sotaque - que gostaria de partilhar esta coluna.
Com efeito, a minha geração, especificamente aquela que se identifica e circunscreve ao espaço físico e sociológico da borda do mar, era do vento e da água, elementos essenciais do nosso quotidiano, aberto a um horizonte para lá das palavras.
Éramos crianças alegres e irrequietas como as ondas cujo som foi o primeiro a ouvir- se, quando chegamos ainda confusos a este mundo. Crescíamos em bandos e a própria natureza envolvente despertava em nós imaginativas brincadeiras.
Assim, o vento despertava para a construção de pequenas lanchas de cortiça ou, mais elaboradas , de madeira, as quais apetrechávamos com velas. Depois era vê-las singrar de uma margem à outra do rio, velas enfunadas para gáudio dos seus possuidores.
Outras vezes era a construção de pequenas élices de madeira, a que chamávamos de “moínhos de vento”. Pomposamente, colocávamos essas élices numa espécie de tótem, uma vara espetada na areia, no cimo da qual giravam com a força do vento.
Para o mar eram os botes feitos de latão trazido da lixeira a céu aberto do Espirro, no topo norte do Campo do Castelo. Imaginávamos viagens e pescarias, as artes , as tempestades e bonanças, enquanto impulsionávamos os pequenos barcos. Podíamos dizer que nascíamos pescadores , por isso podemos afirmar que um pescador não se faz , nasce pescador. Mas isso levar-nos-ia a outra história.
Também a praia , palco por excelência da nossa infância, despertava o nosso imaginário, e brincávamos com os mesmos barquinhos de latão, inventando outras singraduras sobre as ondulações da areia.
Éramos do vento e do mar e não éramos de ninguém por perto na nossa imensa liberdade. Corríamos como lebres a fugir do cabo do mar, a autoridade marítima que vigiava a praia durante a época balnear e zelava pelos bons costumes.
É que nós brincávamos na areia e tomávamos banho completamente nus, como também não usávamos toalha. O sol secava os nossos corpos curtidos pelo salitre do mar e a roupa de todos ficava amontoada num canto qualquer da praia. Na fuga precipitada cada qual agarrava a peça que lhe viesse à mão. Se fôssemos apanhados pelo cabo do mar, éramos metidos na “casa das ratas” dentro do Forte da Lagarteira durante umas horas. Por isso éramos frequentemente confinados aos Caldeirões, a maior parte da época balnear. Ali sentíamo - nos mais livres e seguros. E a mata próxima sugeria- nos brincadeiras aos cowboys e aos índios: lanças, arcos e flechas de acácia, esconderijos nas dunas, eram uma alternativa aliciante. Depois mais um mergulho no rio Âncora e de novo estendidos sobre a areia escaldante a secar ao sol.
Éramos apenas crianças de vida livre e sadia. Construíamos os nossos brinquedos e brincadeiras à dimensão da nossa fantasia, inspirados pelo vento, pela água e pela praia sempre presentes.
A escola do Rego, a nossa escola, agora demolida para ali instalar a Ludoteca, como demolidas serão as árvores por nós plantadas naquela manhã de sábado sem aulas, traz à nossa memória um método de ensino austero. Era bom aprender – passar de cegos a ver – mas as reguadas naquelas manhãs de frio por causa dos deveres errados, ou por um atraso na chegada à aula, que a chuva impiedosa obrigou a refugiar no abrigo de um muro coberto de heras, o medo do olhar severo do professor, é um registo de recordação negativa que levou há dias o meu amigo e companheiro de infância João Amorim a concluir desta maneira um texto seu : “ ó escola, era por isso que nós não te amávamos” .
Maior , ainda, era o dilema daqueles que amavam a escola como se fosse um farol a rasgar as trevas da ignorância mas não podiam, de modo algum, amar o método das reguadas infinitamente desproporcionais à infracção cometida.
Mas , pessoalmente, estou mais grato à escola por aquilo que lhe devo
- e por isso lhe relevo a dureza do método - porquanto não foi suficiente para abalar em mim o amor pelos livros, nem para deixar marcas de sentimento ressentido.

domingo, 11 de março de 2007


Brasão - Escudo verde, contra chefe ondado de prata e verde e em barra três faixetas ondadas de preto e azuI; brocante, âncora de ouro. Coroa mural de quatro torres de prata. Listel branco. com legenda em caracteres maiúsculos e a negro “Vila Praia de Ancora”.
Bandeira - Esquartelada de verde e negro. Cordão e borlas de prata e negro. Haste e lança de ouro.

Selo - Circular, com as peças do escudo sem a indicação de cores e metais, tudo envolvido por dois círculos concêntricos onde corre a legenda “Junta de Freguesia de Vila Praia de Âncora”.
Parecer emitido em 06 de Julho de 1993, pela Comissão de Heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses.

Em 17 de Setembro de 1993, o Parecer, por proposta desta Junta de Freguesia, foi aprovado em sessão da Assembleia de Freguesia de Vila Praia de Âncora.

Vila Praia de Âncora

Vila Praia de Âncora, faz parte do concelho de Caminha e pertence ao Vale do Âncora, tendo aí os seus limites estabelecidos na seguinte ordem: a Norte, a Freguesia de Moledo; a Nascente, a Freguesia de Vile; a Sul, o rio Âncora e a Freguesia de Âncora e a Poente o Oceano Atlântico.
Esta freguesia tem um clima de uma amenidade surpreendente, está aconchegada das ventanias, encrostada em colinas sobranceiras de encantadoras paisagens.
Cerca de nove quilómetros a separam da vila de Caminha. Valença está a aproximadamente trinta km, e Viana do Castelo, está sensivelmente a treze mil metros.
A freguesia de Vila Praia de Âncora já aparece mencionada na documentação do séc. X, então com a denominação de Gontinhães. Era uma paróquia com igreja e que estava organizada muito provavelmente segundo a fórmula ancestral de Villa rústica, à qual pertencia o sítio chamado da Lagarteira.
Esta paróquia de Santa Marinha de Gontinhães atravessou mais de 1000 anos de história local e de tal forma a denominação se enraizou, que ainda é usual na região, tal como ainda há quem chame de Gontinhães a Vila Praia de Âncora, até porque, na verdade só em 1924, a secular Gontinhães se transmutou em Vila Praia de Âncora.
Toda a região é rica em vestígios arqueológicos, quer do Neolítico, quer da cultura Castreja (Idade do Ferro), mas o vale do Âncora tem atraído a especial atenção dos arqueólogos. O rio nasce na Serra de Arga e após 15 km chega ao mar num sítio a 7 km, a sul da foz do rio Minho. No sítio chamado Lapa dos Mouros, pode ver-se aquele que é provavelmente o Dólmen mais notável da pré-história em Portugal (o Dólmen da Barrosa).
Nos finais do século passado, Martins Sarmento deu a conhecer uma povoação castreja, hoje conhecida por Cividade de Âncora. Trata-se dum monte, excepcionalmente bem situado para cumprir missões defensivas entre o mar e uma ampla área circundante, habitada pelo menos até ao séc. I d.C.
Os romanos terão aqui instalado um entreposto mineiro para recolha dos metais que exploravam nas minas de Ribô, Orbacém e Gondar. Talvez por ter existido aí um entreposto com cais de embarque, se tenha gerado a ideia de que os romanos teriam baptizado o sítio com o nome de âncora, por aqui desembarcarem as suas tropas e aqui embarcarem o minério. Essa é a ideia de Argote. No séc. XIII generalizou-se a lenda de que teria sido na foz deste rio que o rei Ramiro (o da lenda de Gaia), afogou a sua adúltera e saudosa esposa com uma mó atada ao pescoço como se fora uma âncora... Ao que tudo indica no entanto, o nome é anterior e tem origem no nome que o próprio rio já teria. Quando a paróquia foi formada, ainda o sítio onde hoje está Vila Praia de Âncora seria completamente desabitado, principalmente por ser um sítio aberto e exposto aos constantes ataques dos piratas normandos. O mesmo Argote diz que aqui terá existido um fortim para vigilância e aviso. Por isso a paróquia inicial se fundou na “Villa” de Guntilares (dum tal Guntila) mais no interior e mais resguardada. Esta “Villa” teria resultado duma acção de presúria efectuada pelo Conde Paio Vermudes, aquando do repovoamento desta faixa do litoral até ao Lima (séc. IX) ou por um seu vassalo que se chamaria Guntila. O mesmo que terá povoado Bulhente. O topónimo já está documentado nos finais do séc. IX, altura em que parte das terras da Vila foram doadas ao Mosteiro de São Salvador da Torre. Data de então a primeira igreja consagrada como era usual, a Santa Marinha. Os tempos posteriores foram bem difíceis e desastrosos devido às razias muçulmanas e a foz do Âncora deve ter-se tornado um dos sítios mais perigosos de toda a costa norte. Era um ancoradouro que dava para um vale rico e fértil, por isso muito cobiçado e também frequentemente assaltado. Daí que uma outra Villa, a de Saboriz, provavelmente fundada no sítio actual de Vila Praia de Âncora, tenha tido uma vida precária, embora a documentação a relacione com uma Venda Velha ou com uma Pousada necessária para esta zona de muita passagem (séc. X) entre Braga e Tui.
Igreja Paroquial, Forte do Lagarteiro, capelas da Sra. Das Necessidades (Sra. Bonança), de S. Brás, de S. Sebastião e do Divino Salvador, Gruta de N. S. de Lourdes, Ponte de Abadim, vários cruzeiros, alminhas e ninhos são patrimónios existentes da freguesia de Vila Praia de Âncora.
A área urbana estende-se para as zonas de Sandia e da Vista Alegre e para a zona industrial da Póvoa e também para os lados da antiga Sobreira onde se localizam as escolas, o centro de saúde e a maioria dos serviços públicos.
Em 1991, ainda 15,2% dos residentes activos se ocupavam da agricultura, contra 31,2% que se empregavam na indústria e já 53,6% no terciário. A tendência para uma evolução rápida e positiva do terciário, assenta fundamentalmente no ramo do turismo e no equilibrado aproveitamento do mar, do rio e do campo ainda rural que rodeia a vila. Esta zona rural, onde, segundo a opinião dos responsáveis da Junta de Freguesia, ainda trabalham 4% dos activos (a maioria como complemento e não como actividade principal), espraia-se desde o Monte do Calvário (local de belíssimas paisagens), pelo lugar da Rocha com todo o seu tipicismo rural e artesanal, até ao lugar do Chão da Lameira com hortas e vinhedos e a Vile, Varais e Bulhente, já nas encostas da Serra de Arga.
Vila Praia de Âncora é uma vila com todas as infra-estruturas e à excepção das Repartições públicas (Finanças, Cartórios e Tribunal) que estão em Caminha (a 9 km), consegue ter uma relativa autonomia em todos os aspectos, a começar pelo comércio local que é diversificado, de qualidade e plenamente satisfatório.
A rede de distribuição domiciliária de água é completa e a rede de saneamento básico apresenta uma cobertura em cerca de 75% e até a lixeira que existia na freguesia já foi encerrada, facto que veio melhorar muito as condições ambientais.
No sector da educação temos o ensino pré-primário, básico e secundário. O pré-primário é assegurado por dois estabelecimentos de ensino: um público e um privado. O 1.º e o 2.º ciclos básicos funcionam na escola básica integrada. O 3.º ciclo básico é assegurado pela Ancorensis Cooperativa de Ensino e o ensino secundário está garantido, também, pela citada Ancorensis. Este estabelecimento de ensino prima pela qualidade e diversidade de opções que oferece à população escolar desde o 7.º ao 12.º anos de escolaridade.
Ao nível da saúde, a proximidade com o Hospital Distrital de Viana (Santa Luzia) coloca a freguesia numa situação aceitável comparativamente com outras situações. Em Vila Praia de Âncora existem já instalações locais modernas de análises e diagnósticos. Como se verifica, portanto, os cuidados médicos são bons e estão bem representados.
Quanto a apoios sociais, Vila Praia de Âncora dispõe de apoio à infância, à terceira idade e ao emprego.
No campo desportivo, além do campo de jogos, dum pavilhão desportivo e dum campo de ténis, há projecto para a construção dum complexo de piscinas. O associativismo é notável, destacando-se entre outros a dinâmica do Âncora Praia Futebol Clube, Clube Ancorense de Caça e Pesca, Sociedade Columbófila, Lions Club, Sociedade de Instrução e Recreio Ancorense, Grupo Etnográfico, Orfeão, Bombeiros Voluntários e “Nucleartes”. A cultura tem também o seu lugar próprio e multifacetado com actividades em quase todas as áreas próprias duma pequena cidade progressiva e moderna como é Vila Praia de Âncora.
A capacidade hoteleira é boa e um dos pilares do desenvolvimento turístico. Diga-se que neste aspecto, também não falta animação e capacidade para atrair turistas: Desde as praias fluviais e atlânticas, neste caso com destaque para a dita Praia das Crianças (um areal de águas tranquilas em que o rio e o mar se acalmam mutuamente para benefício da pequenada), até as maravilhosas margens do rio Âncora, à gastronomia regional, ao magnífico panorama visto do Monte do Calvário, até ao património edificado, em que sobressai a Matriz, o Forte da Lagarteira, as Capelas de Nossa Senhora da Bonança, de S. Brás, do Divino Salvador, de S. Sebastião, etc.

Ainda a respeito da história desta freguesia, no livro "Inventário Colectivo dos Arquivos Paroquiais vol. II Norte Arquivos Nacionais/Torre do Tombo" diz textualmente:
«Esta freguesia aparece mencionada em documentos do século X, sob a designação de Gontinhães.
Na lista das igrejas de Entre Lima e Minho pertencentes ao bispado de Tui, elaborada por ocasião das Inquirições de D. Afonso III, em 1258, é citada a igreja de "Guntianes". As Inquirições referem também São Salvador de Bulhente, que hoje é apenas um lugar de Vila Praia de Âncora. Nessa época, porém, possuía igreja própria, sendo o seu abade apresentado pelos moradores.
D. Rodrigo de Moura Teles, em 17717, transferiu os bens da capela de Bulhente para o sítio do Calvário, por esta ter deixado de ter cura e fregueses.
Na taxação a que se procedeu no reinado de D. Dinis, em 1320, Gontinhães figura enquadrada no arcediagado da Vinha, com a taxa de 40 libras.
No Censual do Cabido de Tui para o sobredito arcediagado da Terra da Vinha, elaborado em 1321, Gontinhães pagava um quarteiro de trigo, uma libra de cera e procuração.Entre 1514 e 1532, no Censual de D. Diogo de Sousa, Gontinhães rendia para a diocese de Braga 23 mil réis. A partir desta data, todas as freguesias de Entre Lima e Minho, da comarca eclesiástica de Valença, passaram a fazer parte da diocese de Braga.Na avaliação dos mesmos benefícios eclesiásticos (1545-1549), esta freguesia rendia 45 mil réis.
Américo Costa descreve-a como abadia da apresentação do Ordinário, como alternativa do rei, tendo anteriormente pertencido à Casa de Vila Real.
Só em 1924, por força da Lei 1616, de 5 de Julho, passou a denominar-se Vila Praia de Âncora.»

( Fontes consultadas: Caminha e seu Concelho, Inventário Colectivo dos Arquivos Paroquiais vol. II Norte Arquivos Nacionais/Torre do Tombo e Freguesias Autarcas do Século XXI )

in www.freguesiasdeportugal.pt

domingo, 4 de março de 2007

Auto-determinação do sujeito Pós-Moderno*

Por Nelson Artur Lopes
Aceitamos facilmente que as identidades são construções sociais, produtos de contextos culturais e simbólicos, de um logos que está sedeado num topos, num território. Ignoramos aqui as variáveis filogenéticas e psicológicas da identidade e focamo-nos nas culturas, pensando a identidade em moldes processuais. Essas construções colectivas são de natureza histórica e além de uma base territorial, consubstanciada na construção dos Estados-nação modernos, culturalmente homogeneizados, assentam em vários processos de socialização e enculturação primária e secundária. Nas sociedades tradicionais e pré-industriais, o sujeito construía a sua identidade com pouca autonomia pessoal, submetido a um grande número de determinações das instâncias socializadoras e a uma cultura fortemente codificada e estratificada. O género, a Ordem social ou Casta, a tradição e o costume, o controlo social rígido e a normatividade, e papéis pré-definidos, deixavam pouco espaço para uma auto-determinação identitária do sujeito, do qual se esperava apenas a conformação à norma.O monopólio educacional dos Estados-nação na Modernidade, perseguindo uma lógica de homogeneização cultural interna (em espaços políticos e culturais muito estanques), promoveu também uma mobilidade cultural descendente, levando ao povo a cultura das elites; daí resultou uma mobilidade social ascendente, permitindo a milhões de pessoas (no Ocidente) romper a rede densa de determinismos sociais e ganhar margem de manobra pessoal. Ao mesmo tempo, a emergência uma cultura mediática omnibus, de massas, democratizou a fruição cultural e trouxe também às elites traços culturais mais populares. E à igualdade de jure, à democracia e à cultura de direitos moderna, somam-se os efeitos dos processos da civilização industrial e urbana, da técnica e da ciência, da instabilidade axiológica, da perda de sentidos unificadores, do relativismo cultural. É uma combinação complexa de factores tecnológicos, políticos, económicos e culturais, processos inerentes à Pós-Modernidade e às globalizações em curso, que conduz ao enfraquecimento do papel dos Estados-nação, à perda de influência de instâncias socializadoras tradicionais, à «crise» das instituições modernas, ao enfraquecimento da coesão social endógena e dos vínculos comunitários e sentidos de pertença, e dos mecanismos de controlo social. A socialização secundária, hegemonizada e homogeneizada pela cultura escolar transmitida, parece estar a sofrer uma forte concorrência de outros canais informativos e formativos paralelos à escola, que contornam facilmente os mecanismos institucionais de determinação enculturadora dos Estados e criam vasos comunicantes entre culturas antes estanques, através de plataformas tecnológicas de comunicação global, incontroláveis. Os efeitos de uma cultura audiovisual globalizada e de meios de comunicação rizomáticos (Internet), não hierárquicos, interactivos, auto-geridos e gerados, minam o sentido de pertença sedeado num território, num topos, num sistema simbólico local ou nacional. Trata-se pois, da transição de um logos assente num topos, para um logos atópico, desterritorializado, onde coexistem em camadas concomitantes, marcadores identitários e cidadanias locais e globais, numa cultura mestiça, híbrida e sincrética. Assim, uma cultura bastante homogénea e rigidamente codificada, em que o sujeito ocupava uma posição essencialmente estática, com uma identidade essencialmente exo-determinada e hetero-estabelecida, reproduzida, parece dar lugar a processos identitários cada vez mais auto-construídos e auto-determinados. Muitos autores salientam a emergência na Pós-Modernidade de processos identitários plurais, múltiplos, compósitos e glocais, que remetem portanto para uma dimensão idiossincrática, auto-apropriada. Será uma nova etapa da ontologia social moderna?
* Texto que pretende contribuir para a compreensão da identidade do povo de Vila Praia de Âncora e de todo o seu vale.

Bibliografia:
GIDDENS, A. (1994), Modernidade e Identidade Pessoal, Oeiras: Celta Editora.
HALL, S. (2003), A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, Rio de Janeiro: DP&A editora.
LAHIRE, B. (2003), O Homem Plural, os Determinantes da Acção, Petrópolis: Ed. Vozes.
LYOTARD, J. F. (2003), A Condição Pós-Moderna, Lisboa: Gradiva.

Nacionalidade e Identidade*

Por Hermano do Carmo, Nuno Garoupa e João Gata

(a) Nacionalidade e Identidade

A identidade portuguesa existe nos seus aspectos culturais (incluindo língua e costumes) e temporais (uma história). Essa identidade é dinâmica e eventualmente com características cada vez mais diversas (menor homogeneidade).
A Nação e o Estado Portugueses são conceitos diferentes. A Nação é o conjunto de indivíduos que, no passado, no presente e no futuro, compartem uma mesma identidade. O Estado é uma estrutura institucional que tem por objectivo facilitar a vida em comunidade.
A inserção crescente de Portugal no espaço alargado da UE por sua vez inserida numa economia globalizante afectou a soberania política e económica do Estado português, mas é discutível, não só na bondade, como na extensão, o impacto dessas alterações na Nação portuguesa.
A Educação tem um papel importante na transmissão da identidade portuguesa, quer na sua faceta de formação inicial quer na de educação ao longo da vida. Os aspectos identificados incluem:
1. Valorização das dimensões experimental, técnica, organização e artística como forma de perceber a cidadania portuguesa de forma transversal,
2. Utilização da épica, numa versão diferente daquela a que nos habituamos, como forma de sensibilizar os jovens para os valores e a identidade portuguesa,
3. Sensibilização para a necessidade de garantir a preservação e valorização do património natural do país, incluindo a valorização do mundo agrário e dos activos marítimos, sublinhando o seu potencial no processo de desenvolvimento económico e social do País, e na manutenção e valorização de um imaginário cultural socialmente enriquecedor ( as questões da Agricultura e do mundo rural como forma de superar problemas económicos ),
4. Desenvolvimento da áreas ligadas ao Mar com carácter de consciencialização da juventude para as suas incidências no campo social, económico, histórico, cultural e de segurança externa e interna.
5. Promoção em todas os níveis de ensino e por todos os meios de uma educação para a liderança e para uma autonomia potenciadora da criatividade, estabelecendo-se uma convivência na diversidade e em respeito (subordinada) ao quadro de valores socialmente aceites, e de uma educação para democracia, vista como meta de sociabilidade e como método para alcançar essa meta.

(b) Educação, Nacionalidade e Economia

A inserção crescente de Portugal na economia global tem revelado problemas estruturais, e conjunturais, graves ao ponto da convergência da economia portuguesa com a média da UE, que se processou ao longo dos últimos 40 anos, não estar garantida no futuro.
Identificam-se três pontos de vista bastante diferentes:
1. Apostar numa melhoria de políticas globais e transversais para sectores importantes para a soberania política de Portugal, nomeadamente agricultura e mar, como forma de superar problemas económicos actuais.
2. Repensar e eventualmente alterar a cultura do crescimento económico contínuo identificando uma tensão potencial ou efectiva entre solidariedade e eficiência.
3. Aprofundar a cultura de crescimento económico superando os limites institucionais, organizacionais e culturais da Nação portuguesa com raízes históricas na pobreza, ruralidade e provincianismo de uma economia fechada e com um conjunto de regras ineficazes que a sociedade portuguesa ainda hoje não conseguiu superar.
O papel da Educação na reforma da Economia é extremamente valorizado. Contudo reconhece-se que o valor acrescentado da Educação dependerá do enquadramento institucional e político dessa reforma.

(c) Educação, Nacionalidade e Defesa

A defesa nacional passa pela consciência individual e grupal de que a segurança externa é responsabilidade da Nação, e não dos Aliados ou de terceiros. Por outro lado, a ameaça externa à identidade nacional existe ainda que possivelmente de forma diferente daquela que houve no passado e haverá previsivelmente no futuro. Importa também distinguir a segurança dos nacionais ou da Nação da segurança do Estado na sequência lógica da distinção entre Estado e Nação.
A Educação é importante para consciencializar os jovens daquilo que representam a identidade portuguesa, o Estado português e as respectivas ameaças externas. Uma componente importante da defesa nacional é a Educação enquanto forma de criar cidadãos responsáveis e participativos.
* A identidade de Vila Praia de Âncora e do seu vale existe e este texto é mais uma demonstração do trabalho que os responsáveis políticos, agentes de educação e associações devem ter na promoção da identidade ancorense.

Papers:
(1) Identidade, Economia e Defesa Nacional, Vilas Leitão
(2) Agricultura na Economia e na Defesa, Miguel Mota
(3) O Papel do Mar, José Manuel Castanho Paes
(4) A Nação e o Estado, Nuno Garoupa e João Gata
(5) Educar para a Identidade Nacional, numa Economia Solidária e Numa Cultura de Paz, Hermano do Carmo

quinta-feira, 1 de março de 2007

Etnografia do Vale do Âncora

Vira do Vale do Âncora

Igreja de Âncora praia
Feita de pedra morena
Dentro dela vão à missa
Dois olhos que me dão pena

Aqueles murinhos brancos
São amparo do meu bem
Muitas mocinhas se estragam
Pela vaidade que tem

Manuel é pano fino
Todo picado de traça
Eu hei-lhe andar ao geito
Que lhe hei-de cair em graça

Meu amor se fores à missa
Põe-te em sítio que eu te veja
Não faças andar meus olhos
Em balanços na igreja

Deixa que te hei-de encontrar
Numa quelha sem saída
Que te hei-de perguntar
Que te importa a minha vida

Antropologia e Turismo: O autêntico e o banal: como descrever a experiência turística?*

Álvaro Campêlo
C.E.A.A.
Universidade Fernando Pessoa

Sumário

Os Estudos sobre o turismo passaram por modelos vários, desde os mais tradicionais, até aos que a posmodernidade questionou. A introdução de elementos novos dentro da investigação, como cultura, património, turismo sustentável, e novos espaços de fruição, obrigaram a modelos inovadores na indústria turística. Contudo, acreditamos que estes novos modelos não poderão levar por diante uma correcta abordagem do turismo, se não incluirem nas suas preocupações uma perspectiva antropológica.
É difícil manter um sentido de continuidade histórica num contexto do efémero e acumulação flexível. A ironia é que a tradição preserva-se enquanto comercializada e mercantilizada. A busca das raízes termina por produzir uma imagem, um simulacro, um pastiche!
(Harvey, 1989: 303)
Questionar o turismo a partir da antropologia pode parecer um pouco abusivo. É nosso intento, tendo como partida algumas reflexões de autores que investigam o fenómeno do turismo, propor um olhar antropológico sobre esta problemática. A antropologia tem uma palavra pertinente a dizer quando hoje, no redimensionamento das estratégias relativas ao turismo, se trata de assuntos como os da cultura, do património e do desenvolvimento sustentado.
As fracturas que se vinham acentuando desde os finais dos anos 80 nos modelos turísticos, começam a encontrar um consenso, quanto à formulação de novas estratégias, apesar das características destas não obterem a unanimidade dos autores (cf. Urry, 1990; Marchena, 1994; Pretes, 1995; Llurdes, 1995). Resumindo as grandes mudanças sucedidas nesta época, Donaire (1998: 55-60) contrapõe os factores de desequilíbrio do fordismo[1], ao período posfordista, de difícil transição. Os investigadores estão de acordo quanto aos desequilíbrios daquele período, momento da grande explosão do turismo como indústria. Assim, Vera (1995) identifica cinco desequilíbrios do modelo turístico fordista: 1. desequilíbrios sectoriais, 2. desequilíbrios tecnológicos, 3. desequilíbrios ambientais, 4. desequilíbrios socioculturais:
O turismo fordista tinha por base uma especialização sectorial, apartir de poucos recursos naturais (praia ou montanha), numa oferta caracterizada pela homogeneização. O destinatário é visto como uma massa uniforme, esquecendo-se da singularidade da procura e das novas exigências. A contradição que se verifica entre uma oferta rígida e homogénea, e uma procura em mudança e diferenciada, é um dos primeiros sintomas da crise deste tipo de turismo.
Este modelo turístico teve uma rápida consolidação por se basear no avanço tecnológico dos transportes e das comunicações. Apesar disso, a oferta turística fordista não foi capaz de incorporar os novos avanços tecnológicos.
O principal objectivo do turismo de estrutura tradicional foi a maximização do número de visitantes. A lógica do número foi a principal responsável dos processos de degradação ambiental. Contra este modelo está a nova sensibilização para os problemas ambientais e a implantação de uma ética ecológica.
O modelo caracteriza-se por uma extrema concentração da oferta turística, em termos geográficos, à volta de um elemento de atracção. Daí uma saturação à volta do espaço de atracção.
Por último, este modelo caracteriza-se por um tensão cultural e social entre anfitriões e hospedes. O turista apresenta-se como um intruso, fazendo com que o espaço de relação com as comunidades locais seja criado através de uma autenticidade teatral, com consequente banalização da cultura.
Perante esta situação, a mudança era urgente, mas difícil. Um novo modelo, que Donaire classifica de posfordista (1998: 58), e que se pode caracterizar por uma série de conceitos: 1. a crise da standartização, 2. a intromissão do turismo em novas esferas sociais, 3. a redefinição da autenticidade no turismo, 4. a renovação tecnológica, e 5. a universalização do turismo:
Nasce a singularidade como orientadora da oferta. Substituem-se os produtos maciços, não diferenciados, e nascem os produtos específicos para segmentos concretos da população.
A resposta à standartização é plural. O turismo, segundo este modelo posfordista, amplia as suas fronteiras conjugando muitas das suas significações anteriores com espaços e atitudes diferentes. Diminuindo várias das distinções que o definiam em relação a outras realidades: turismo e zonas comerciais (os grandes centros comerciais, que são tanto locais de vendas como espaços de lazer e lúdicos), o turismo e acultura (a revalorização do património e a criação de espaços de lazer junto do elemento cultural), o turismo e o espectáculo (os grandes eventos – Exposições Mundiais, Jogos Olímpicos...), o turismo e o desporto (turismo junto a grandes complexos desportivos (por exemplo, o golfe), e, até, o turismo e o trabalho (o turismo de congressos, ou os grandes complexos industriais como espaços de visita e de eventos culturais).
Uma redefinição da autenticidade, através de duas atitudes: a celebração do inautêntico (pelo uso do hiper-realismo), e a reivindicação da identidade local.
A inovação tecnológica, especialmente através das tecnologias da informação (sistemas de decisão global e de gestão global). Estas tecnologias permitiram superar o modelo anterior e responder assim às necessidades específicas dos diferentes segmentos de procura.
A universalização da procura turística. Nascem novos cenários para o turismo, que se afirmam em relação aos tradicionais. A crescente procura de espaços singulares faz com que qualquer espaço possa ser potencialmente um espaço turístico (cf. Urry, 1990).
Da situação entretanto surgida com o fim do modelo fordista, criaram-se novos cenários, onde se expressa a tensão em que vive actualmente o turismo: reconversão das áreas industriais em declínio para fins turísticos; estratégias de reconversão dos destinos turísticos consolidados; novos espaços turísticos da hiper-realidade; e crescente procura de estratégias turísticas de sustentabilidade.
Ora, é dentro destes cenários, em que se desenham os novos modelos da teoria e prática turística, que cabe uma reflexão antropológica pertinente.O turismo redefine-se dentro de moldes que ultrapassam as estratégias tradicionais. A redescoberta do património, introduz neste novos espaços e realidades, como zonas industriais reconvertidas, seja pelo aproveitamento dos «vazios» entretanto causados pelo fim do seu uso (paisagens da desindustrilização), ou, num sentido por vezes definido como «posmoderno», fazer desses espaços industriais espaços de memória, introduzindo o espaço de produção na lógica turística. Os conceitos de património, autenticidade e identidade, emergentes nos modelos recentes da industria turística, têm de se sujeitar a uma abordagem antropológica crítica.
O conceito de património deverá incluir não só o conteúdo a que se refere, mas também as relações sociais e culturais que lhe são inerentes. Não é património aquilo que não possa ser compreendido e sentido, como algo de pertença, pelo grupo humano que o herda. A herança patrimonial tem uma utilidade que passa para além do mero acto de «guardar» ou conservar. Ela é algo que enriquece as comunidades, porque lhes dá sentido, identifica-as com a sua memória, fazendo com que se transforme num capital, a que podem recorrer sempre que é preciso investir na consciência de si mesmas, e na transformação do mundo onde age.
De um olhar reducionista e elitista do património, ora como expressão do exótico, lugar do «outro», ora como máximas expressões do raro e do belo, próprio do mundo ocidental, ou ainda, como espaços do popular, visitado pela nostalgia de uma identidade perdida, passou-se para uma nova relação com o património mais próprio do sentido do «homem comum», fazendo com que o seu desfrute seja também ele alterado. O «consumo» do património insere-se no conceito de mercantilização da cultura: vende-se e compra-se(cf. Hewison, 1987) para usufruto imediato, e não como uma raridade exclusiva e exclusivista. De artefactos e produtos singulares, o património passou a produto do mercado, criando assim um sistema de produção institucionalizado sujeito aos mais variados interesses. O produto tem interesse, se interessa aos consumidores, e já não tanto pelo valor de que se reveste (seja ele de que tipo for). Satisfazer este interesse, tornou-se um dos processos mais destruidores da noção original de património: o enfoque está no usufruto daquele que o «recebe», e não nas práticas e sentidos daquele que o criou!
Os interesses referidos anteriormente, reproduzem um «mundo» e um desejo originados nos sentidos tradicionais de património, correspondendo à força apelativa do contacto com o diferente. No entanto o que se dá são cópias e lugares de ficção, impostas por um mercado, sedento de uma alteração do quotidiano. A autenticidade dos produtos e dos espaços turísticos diminui na ordem do crescimento da propaganda que o vende!
Um dos campos onde se procura superar esta difícil relação entre o património e a indústria turística é a reconversão dos espaços industriais e urbanos. Desta forma, não há uma mera reprodução, nem uma realidade totalmente estranha. Trata-se de uma nova realidade que conjuga um espaço histórico, carregado de memórias, com uma nova utilização, inovadora e funcional: revalorizam-se zonas urbanas degradadas (veja-se Lisboa – Parque das Nações –, Londres – Docklands –, Barcelona – o porto – …) que adquirem uma centralidade funcional e turística, apesar de periféricas geograficamente; dá-se uma nova identidade a edifícios em desuso (Alfândega e Cadeia da Relação, na cidade do Porto, etc.), os quais passam a ser atracções turísticas. Assiste-se, nos casos mais controversos, em que a revalorização destes edifícios singulares e dos espaços urbanos obedece as estratégias comerciais, a um aumento da conflitualidade entre a autenticidade e o património[2].
Um dos fenómenos mais originais do turismo contemporâneo, e tanto do interesse dos investigadores da posmodernidade, é o dos parques temáticas, ou de cidades de ficção (como Las Vegas). Aqui os cenários adquirem uma importância capital, fazendo do mundo uma representação teatral, onde se exprimem vidas de ficção. Ao classificar estes espaços como espaços do hiper-real, Donaire (1998: 63) desvela, a partir deles, as tensões da própria modernidade: o conflito entre o público e o privado, entre a função e a ficção, ou entre a representação e a realidade. Veiculando um discurso de ubiquidade, estes parques e cidades reproduzem os cenários mais diversos e de origem mais díspar entre si: a Disneylandia na Europa e na Ásia, Paris em Las Vegas! Metáforas da aldeia global, veiculam uma ideologia do reconhecível e do discurso impositivo, estruturando uma tematização que se apresenta como um resumo do mundo em pacote vendável! Planificados e concebidos integralmente, alteram o sentido tradicional de relação com o meio que os envolve. E ao provocar uma ruptura com ele, simulam a viagem fantasiada. Surge aquilo que Shields (1991) chama de «espaços-à-margem», porque não sujeitos ao espaço preexistente, e sem relação com a realidade que os envolve.
Num mundo onde as viagens se multiplicaram, e a redução das distâncias é um facto, parece haver uma certa contradição na multiplicação destes parques temáticos! No passado, visitar a Amazónia, o oeste americano, as Caraíbas dos piratas, a África, ou os desertos, tratava-se de uma experiência reservada aos aventureiros (que podiam dispor de tempo e dinheiro para isso). Hoje quer-se ter o mundo ao pé de casa, saltar da selva para o deserto, deste para os oceanos, de preferência dentro do Centro Comercial onde se fazem as compras. Na ilusão da aventura, o turista do parque temático, resguarda-se dos perigos e medos transportados para sua casa pelos media.
As grandes mudanças entretanto referidas nos modelos do turismo culminam naquilo que autores (cf. Trzyrna, 1995) classificam de lógica da sustentabilidade. Se no início do nosso discurso colocamos a questão da pertinência da abordagem antropológica, no que se refere ao turismo, fizemo-lo porque tais modelos não poderão ser desenvolvidos sem a participação daqueles que são os especialistas das questões sociais e culturais: os antropólogos.
A Cimeira do Rio (1992) colocou os princípios de um desenvolvimento sustentável: a) o desenvolvimento sustentável permite responder às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras responder, por sua vez, às suas; b) o desenvolvimento sustentável é um processo de mudança que tem em conta, de forma harmónica, a exploração dos recursos, a orientação dos benefícios, a aplicação das técnicas, a evolução das instituições e empresas, com o fim de reforçar o potencial socio-económico, apto para responder às necessidades e aspirações da humanidade; c) não existe nenhum modelo ideal de desenvolvimento sustentável, já que os sistemas políticos e económicos, assim como as realidades ecológicas, variam de lugar para lugar.
Tendo em conta estes princípios, o turismo sustentável é um turismo aberto e flexível, tendo em conta a realidade económica, social e cultural de um determinado lugar. Donaire (1998) propõe sete princípios básicos que identificam este modelo de desenvolvimento turístico:
Turismo planificado. a planificação terá em conta um estudo detalhado das condições do presente e das perspectivas do futuro, a partir de determinadas variáveis: económicas, ambientais, sociais e culturais;
Turismo integrado. A oferta turística deve ser o resultado natural dos recursos locais: as formas arquitectónicas, os acontecimentos festivos, a gastronomia, a relação com o território. Não pode haver turismo alheio à identidade (mesmo tendo em conta o quanto difícil é definir este termo) do lugar onde ele se pratica.
Turismo aberto. O turismo sustentável está aberto ao seu território. A dimensão local do turismo assenta nas especificidades locais, na abertura às localidades vizinhas, propondo assim uma oferta baseada na diversidade;
Turismo dimensionado. Não pode haver um turismo sustentável sem estar dimensionado ao tempo em que se realiza e ao espaço onde se pratica. O fim do conceito de «estação» turística é importante para reduzir os impactos sobre o território, a despersonalização da experiência turística. A viabilidade de um projecto turístico depende de um dimensionamento onde a capacidade do território e a qualidade da experiência sejam acauteladas.
Turismo participativo. Deverão ser incluídos novos sistemas de gestão, através da participação de todos os agentes que intervêm no processo turístico. É importante referir que esses agentes não são meramente os profissionais do turismo, mas também as comunidades locais, as associações comunitárias e outros agentes económicos e políticos.
Turismo duradouro. O turismo sustentável não se baseia num crescimento a curto prazo, tendo em conta a procura. Ele deverá Ter em conta o modelo que propõe e definir a partir dele as estratégias a longo prazo. Assim, o turismo sustentável deverá integrar o crescimento económico com a preservação do meio ambiente e da identidade local, as quais são os principais activos do desenvolvimento turístico.
Pensar em estratégias baseadas na sustentabilidade implica um questionamento que não tenha somente em conta o equilíbrio do crescimento turístico, ou a protecção das áreas naturais protegidas. Um turismo sustentado é um modelo que apela a uma lógica de autenticidade, porque integrador de sentidos múltiplos e de agentes vários. Para isso, é necessário alargar a noção de experiência turística para além do olhar do visitante e da estratégia do vendedor.
O turista é atraído pelo exótico, pelo diferente, pelo «outro» que se lhe oferece como um estranho a descobrir (cf. Smith, 1987). Contudo, este posicionamento requer cuidados redobrados quando nos referimos a mercados turísticos. Não podemos ultrapassar a questão de que se trata de um «encontro» de culturas e saberes, onde um deles tende a ser impositivo ao outro, dado o poder que dispõe ser de uma ordem económica e política afirmadas como superiores. Desta forma, o espaço turístico desenvolve-se segundo estratégias exógenas e respondendo a sentidos que lhe são estranhos.
A sociedade contemporânea aborda, a nível teórico, a diferença cultural de uma forma muito diferente do modo como o fazia no passado. A relatividade cultural é um dado adquirido. Contudo, a aproximação experiencial a esse facto esquece a dimensão construtiva e viva da cultura de uma comunidade, ou seja, os significados de uma cultura não podem ser fossilizados.As culturas são complexas e continuamente reinterpretadas pelos actores sociais, obrigando a uma atenção contínua e interessada, a qual não se coaduna com imagens e identidades materializadas numa apropriação narcisista.
A autenticidade, na medida em que ela é possível ainda, exige um processo de «relação», onde os espaços e os agentes possam explicar o significado dos discursos que partilham. Contextualizar o turismo não significa unicamente salientar a dimensão local e estabelecer as relações com os espaços envolventes, no sentido de turismo aberto. Contextualizar significa, aqui, partilhar os «textos» (estratégias e discursos) de realidades diferentes num espaço comum, de modo a que os agentes desta relação de partilha possam entender os vários sentidos presentes. Só dentro desta lógica da relação de partilha se pode compreender hoje o turismo cultural, nas variadas dimensões de que ele se reveste. A haver uma ética na indústria turística actual, ela deverá passar por uma política que privilegie a relação:
Dos visitantes com as comunidades locais. A indústria turística não pode privilegiar unicamente os turistas, esquecendo que os produtos culturais têm origem em actores sociais, com uma dignidade intrínseca, e uma palavra a dizer do património e dos espaços que partilham com aqueles que os visitam. A qualidade de vida das populações e o enriquecimento mútuo entre população e visitantes deve ser uma preocupação dos modelos turísticos. Nos contactos culturais está sempre presente uma possibilidade de conflito (Eller, 1999), o qual não pode ser alimentado pela indústria turística.
Dos actores sociais com o meio ecológico. Não se pode continuar a desenvolver um turismo ecológico meramente com a gestão de visitantes e com a defesa do ambiente. Os actores devem assumir uma experiência de relação com o meio que visitam, em que o próprio processo turístico seja planeado como forma de o preservar e valorizar. A relação com o meio ambiente deverá resultar num sistema socio-natural criativo e em constante renovação (Bennett, 1995).
Dentro de uma perspectiva interdisciplinar, cremos ser do interesse de todos a inserção urgente da prática antropológica nos mais variados campos da indústria turística. Quando os sentidos das relações sociais e culturais são a base da superação da banalidade e do artificial, a crítica antropológica assume um papel inovador, e, na maior parte das vezes até, proporciona a vivência de mundos desconhecidos e experiências extraordinárias.
*Reflexão sobre o conhecimento antropológico e o seu aproveitamento para o desenvolvimento de políticas de turismo. Um excelente texto para reflectir sobre a realidade da oferta turística de Vila Praia de Âncora e do Vale do Âncora.

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[1] Classifica-se como fordista uma estrutura tradicional, e como posfordista, aquela que obedece a uma nova lógica (Donaire. 1999: 55).
[2] Donaire (1998: 61) cita o caso de um grande centro comercial, construído em Edimburgo, no seu centro histórico junto da Catedral, o Waverley Shopping Centre; entre outros casos, temos ainda o do centro histórico de York (Meetahn, 1996), onde se pode identificar um processo de mercantilização do passado histórico para consumo recreativo.